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Rubrica dedicada à reflexão sobre o dever de cuidar de todos e os riscos de legalizar a eutanásia
Tiago Azevedo Ramalho
Textos anteriores: Introdução (nn.º 1-3). I. A terra em movimento. A acção dos Tribunais Constitucionais (nn.º 4 e 5, 6 a 10, 11 a 15, 16 a 19, 20 a 24, 25 a 26). II. A terra em movimento. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (nn.º 27 a 29).
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– 30. O Decreto 109/XIV. – Em votação final global de 29 de Janeiro de 2021, foi aprovada pelo Parlamento português a eutanásia e a ajuda ao suicídio – aprovação que, de acordo com o que antes se expôs, se enquadrou dentro de uma «segunda vaga» de acções de legalização da eutanásia e da ajuda ao suicídio (nn.º 1 e 4). Não foi esse, porém, nem o princípio, nem o fim da história da legalização da eutanásia e da ajuda ao suicídio: não foi o princípio, uma vez que, antes do procedimento legislativo no âmbito do qual a legalização da eutanásia e da ajuda ao suicídio foi aprovada, e que tinha sido iniciado em 2019, houvera um outro, iniciado em 2017, que o tentara sem sucesso. Mas também não foi o fim da história, posto que, pedida pelo Presidente da República a fiscalização preventiva de constitucionalidade de uma parte do regime legal, o Tribunal Constitucional se pronunciou pela respectiva inconstitucionalidade, razão pela que o diploma não veio a entrar em vigor.
Já vimos de que forma diferentes tribunais com função de fiscalização da constitucionalidade se colocaram ante a matéria da eutanásia e da ajuda ao suicídio, matéria sobre que versou a parte I (nn.º 4 a 26); e, bem-assim, o teor da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, conforme analisado na parte II (nn.º 27-29). É agora o momento de ver em que termos a questão da legalização da eutanásia e da ajuda ao suicídio se colocou concretamente entre nós: primeiro, olhando brevemente o procedimento legislativo iniciado em 2017, que culminou com a não aprovação do regime legal (n.º 31); depois, para o procedimento legislativo iniciado em 2019, de resultado inverso (nn.º 32-34). A apreciação da actividade de fiscalização do Tribunal Constitucional ficará para a parte seguinte da presente reflexão (parte IV).
– 31. A rejeição da eutanásia e da ajuda ao suicídio (2017-2018). – Hão-de ser certamente muitas as «causas remotas» da intenção de legalização da eutanásia e da ajuda ao suicídio – desconsiderando razões de puro e simples jogo e combate político, que, em temas de fractura, encontra sempre um bom espaço para a mobilização militante –. Já como «causa imediata» de colocação do tema da legalização da eutanásia e da ajuda ao suicídio em cima da mesa esteve aparentemente a apresentação de uma petição por parte do movimento cívico intitulado «Direito a morrer com dignidade» (Petição n.º 103/XIII/1.ª), na qual se solicitava a discussão e a promoção «das iniciativas legislativas necessárias à despenalização da Morte Assistida.» Seguiu-se-lhe prontamente uma «contra-petição», apresentada a 25 de Janeiro de 2017, desta vez pelo movimento intitulado: «Toda a vida tem dignidade» (Petição n.º 250/XII/2.ª). Pretendia-se, agora, o reforço da tutela da vida humana; a adopção de medidas de protecção de idosos e de quem se encontrasse incapacitado; a garantia de prestação de cuidados continuados e paliativos; e a rejeição de qualquer decisão que conferisse ao Estado poderes de dispor ou de apoio à eliminação de vidas humanas. Em razão das referidas petições, iniciou-se um período com renovados apelos ao «debate» e ao «esclarecimento» da população. De entre múltiplas acções cívica, destacou-se o ciclo de debates «Decidir sobre o final da vida», promovido pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, no ano 2017.
Entendendo-se que o «debate público» havia cumprido a sua função, chegou a hora de deliberar sobre a legalização da eutanásia e da ajuda ao suicídio. Em cima de mesa estavam os Projectos de Lei apresentados pelos seguintes partidos: «Partido Socialista» (PS), «Bloco de Esquerda» (BE), «Partido Ecologista “Os Verdes”» (PEV) e Partido «Pessoas-Animais-Natureza» (PAN). Em votação na generalidade, os referidos projectos foram rejeitados a 28 de Maio de 2018. A rejeição deveu-se ao voto contra da maioria significativa dos deputados do «Partido Social Democrata» (PSD), ao unânime voto contra do «Centro Democrático Social – Partido Popular» (CDS-PP) e do «Partido Comunista Português» (PCP), e ao voto de alguns deputados do PS que não alinharam com a respectiva bancada. As abstenções de alguns deputados do PSD e do PS contribuíram também para que a aprovação não tivesse lugar. Com algumas diferenças nas votações das diferentes propostas, obtiveram-se os seguintes resultados finais: o projecto do PAN teve 102 votos a favor, 116 contra e 11 abstenções; o projecto do Bloco teve 104 votos a favor, 117 contra e 8 abstenções – chumbado; o projecto do PS teve 110 votos a favor, 115 contra e quatro abstenções – chumbado; e, finalmente, o projecto do PEV teve 104 votos a favor, 117 contra e 8 abstenções. Em suma: todos os projectos foram recusados.
– 32. A aprovação da eutanásia e da ajuda ao suicídio (2019-2021). Votação parlamentar. – Pedira-se um esclarecedor debate, e houve debate. Foi julgado esclarecedor, conforme alegadamente se pretendera. Formado um esclarecido sentir parlamentar, a decisão tomada foi de rejeição. Supunha-se que por algum tempo, mais longo do que breve, o tema estaria fora da agenda política.
Um ano e meio depois, porém, entraria um novo Projecto de Lei de legalização da eutanásia e da ajuda ao suicídio, ao qual outros três se adicionariam, pelos mesmos actores que dinamizaram a primeira tentativa de legalização da eutanásia e da ajuda ao suicídio. Desta segunda vez, já não houve apelo ao debate; e também não mereceu qualquer especial atenção o primeiro sentir parlamentar. De diferente entre os projectos entrados em 2017 e em 2019 estava apenas um dado fundamental: a mudança da composição parlamentar em resultado das eleições legislativas de 2019.
Os projectos foram submetidos a votação a 29 de Janeiro de 2021. O alinhamento de forças era semelhante ao da votação anterior, mas a força de cada partido é agora diferente, atenta a realização das eleições legislativas de 2019. Assim, os votos favoráveis de PS, de – agora – 14 deputados do PSD (incluindo o líder partidário), do BE, do PAN e do PEV, e ainda deputado único do Partido Iniciativa Liberal e de duas deputadas não inscritas, foram largamente suficientes para a aprovação do regime legal. Contra, assinala-se o voto de uma maioria, embora menor, dos deputados do PSD, o voto de 9 deputados do PS, o voto unânime do PCP e do CDS-PP, e, finalmente, do deputado único do Partido «Chega». Abstiveram-se 4 deputados, repartidos entre o PS e o PSD.
Em síntese: o regime foi aprovado por 136 votos a favor e 78 contra (com 4 abstenções).
– 33. A aprovação da eutanásia e da ajuda ao suicídio (2019-2021). O teor do regime. – Ante aquela aprovação, tornou-se possível determinar em que termos, para a Assembleia Parlamentar, a eutanásia e a ajuda ao suicídio deveria ser tida como admitida.
A partir da redacção final de consolidação dos diferentes projectos, publicado sob a forma de «Decreto da Assembleia da República n.º 109/XI», detecta-se que o regime legal estrutura-se nos seguintes termos:
(a) O diploma despenaliza a eutanásia e a ajuda ao suicídio em dadas circunstâncias (art. 1.º e 27.º), mas também a regulamenta, e prevê-a mesma como uma prestação por parte do Sistema Nacional de Saúde (cf. o art. 12.º, n.º 2). Nesta medida, o art. 1.º, no qual se descreve o objecto do diploma, omite um eixo fundamental do regime: não se trata somente de despenalização, mas de prestação pública da eutanásia e da ajuda ao suicídio (com efeito, pode haver «despenalização» sem «prestação» como serviço de saúde, como nomeadamente ocorre com a ajuda ao suicídio na Suíça ou na Alemanha).
(b) Opta-se por redenominar as práticas comum e univocamente designadas por eutanásia e ajuda ao suicídio (neste segundo caso, há também outras designações suficientemente unívocas) pelo termo, ambíguo e incompreensível sem esclarecimentos adicionais, «morte medicamente assistida».
(c) Os termos em que se admite a «morte medicamente assistida» são prolixamente definidos no art. 2.º do diploma. Para que a «morte medicamente assistida» seja admitida, exige-se, nos termos do respectivo n.º 1:
(i) Um requisito de capacidade: que a pessoa seja maior;
(ii) Um requisito de vontade: que manifeste a sua vontade de modo actual e reiterado, sério, livre e esclarecido;
(iii) Um requisito objectivo, relativo à patologia de que sofra: «situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal»;
(iv) Um requisito procedimental: desde que a morte seja «praticada ou ajudada por profissionais de saúde.»
(d) Grande parte do regime destina-se a regulamentar em que termos esta prática ou ajuda pode ter lugar, bem como quais as instâncias de fiscalização previstas (art. 3.º a 26.º). Propósito desta densa urdidura burocrática é garantir, mediante a intervenção de «profissionais de saúde», a aferição da presença dos requisitos necessários para que a provocação da morte tenha lugar, por um lado (daí a necessária intervenção de um médico especialista na doença, e a eventual intervenção de um médico psiquiatra), e a sua provocação de modo eficiente, por outro.
– 34. A aprovação da eutanásia e da ajuda ao suicídio (2019-2021). Alguns eixos fundamentais. – Descritos os traços fundamentais do regime aprovado, dele parece poder retirar-se os seguintes eixos valorativos fundamentais:
(a) Equipara-se a eutanásia e a ajuda ao suicídio, apesar do parcial diferente significado das duas práticas;
(b) Reconhece-se a intenção legislativa de legalizar a eutanásia e a ajuda ao suicídio num elenco restrito de casos. No imediato, não estamos perante uma genérica liberalização de qualquer uma daquelas práticas, que são admitidas apenas dentro de um círculo de causas relacionadas com uma situação de grave patologia.
Se o elenco restrito de casos não é sempre, tratando-se de uma prática como a da eutanásia e a ajuda ao suicídio, excessivamente amplo, e por isso já só por si inadequado, é uma questão sobre que adiante se reflectirá.
(c) O regime aprovado supõe um forte comprometimento do Estado com a prática da eutanásia e da ajuda ao suicídio. Se nenhum regime se pode apodar de verdadeiramente neutral, pois que na opção pelo «respeito» do entendimento alheio está sempre a meta-decisão de decidir se é ou não hipótese em que o dito «respeito» deva ter lugar, pode identificar-se diferentes graus de comprometimento com a prática: certamente que o Estado se implica menos num regime que se limita a permitir a ajuda ao suicídio entre particulares (Suíça, Alemanha) do que num outro em que os meios públicos são organizados em vista dessa mesma prática, em que se redefine o alcance da actividade médica, em que a possibilidade de eutanásia e a ajuda ao suicídio é conduzida por profissionais com função clínica, que acompanham o doente na sua actividade. O regime tem, por conseguinte, uma assinalável carga publicística, ainda que em nome do alargamento das possibilidades colocadas ao dispor de cada indivíduo em sede de fim de vida. Assim se explica a equiparação da prática da eutanásia e a da ajuda ao suicídio. De facto, com a «parificação categoria e normativa entre as duas práticas de fim de vida», como depois dirá o Tribunal Constitucional português (p. 21 do Acórdão), consuma-se a publicização de qualquer uma delas. Nas duas hipóteses, a comunidade política compromete-se a garantir que a provocação intencional da morte de alguém será realizada com garantia de eficácia.
(d) É manifesta, também, a intenção de colocar a prática da eutanásia e da ajuda ao suicídio dentro do campo simbólico da prestação de serviços de saúde e da actividade médica. Apesar de a decisão de solicitar ou participar na eutanásia e da ajuda ao suicídio ter índole estritamente ética, o processo é dito «clínico», totalmente conduzido por «profissionais de saúde», a dirigirem-no nessa sua qualidade; o próprio regime é intitulado de morte «medicamente» assistida. Ou seja: embora a prática da eutanásia e da ajuda ao suicídio seja sempre e apenas uma decisão ética, é apresentada clinicamente como uma possível solução final para um problema de saúde. Onde se encontre uma situação «sofrimento intolerável», «lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico» ou «doença incurável e fatal», abre-se clinicamente a possibilidade de tal prática ter lugar, colocada ao dispor do doente.
Deste modo, como se esvazia, e dilui, o significado moral da prática, acobertada do enquadramento médico que a envolve; e como se sugere, visto a partir de um outro ângulo, que a prática é um acto médico normal, redelimitando-se as fronteiras da medicina (aliás, por isso mesmo se impondo que se reescreva o juramento de Hipócrates). Precisamente deste ponto arrancaram, aliás, parte das objecções constantes do Parecer emitido pelo Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas da Ordem dos Médicos (CNEDM), solicitado e apresentado no âmbito procedimento legislativo: «O CNDEM considera que (…) a Eutanásia e o Suicídio assistido, sob a designação de “morte medicamente assistida”, não poderão ter lugar na prática médica segundo as leges artis e a ética e deontologia médicas.»
(e) Nota-se, por fim, a nenhuma preocupação legislativa em colocar de modo correlacionado (i) a possibilitação da eutanásia e da ajuda ao suicídio e (ii) o oferecimento efectivo e actual de soluções de cuidados paliativos, por forma a evitar que o «livre» pedido de provocação intencional da própria morte possa ser determinado pela ausência, porque não experimentada, de prestação de cuidados paliativos.
Como seja, à aprovação do regime não se seguiu a promulgação por parte do Presidente da República: seguir-se-ia antes a fiscalização preventiva da constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional português.
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Próximo texto: o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 123/2021: uma visão panorâmica e perspectivas em confronto (4/10).
Imagem: Fachada frontal do Palácio de São Bento em Lisboa