Qui. Mar 28th, 2024

Podia Deus não ser uma comunidade?

Luís Manuel Pereira da Silva

A Trindade é um mistério: mas podemos falar disso.

Alexandre Palma

Editora Paulinas | 2014 | 206 páginas

Este é um livro corajoso. Os tempos não estão fáceis para quem se aventura na discussão sobre a natureza de Deus, em tempos que parecem já nem sequer questionar a possibilidade de Deus existir. Mas o curioso deste livro é que a fé em Deus Trindade não é aqui apenas matéria de uma discussão sobre a natureza de Deus, mas sobre a própria natureza da Natureza. O autor propõe-se seguir um processo que chegue ao mistério da Trindade constatando que a natureza é toda ela dialógica, intercomunicacional, sendo que, se de nada nada vem, então esta condição comunicacional das criaturas terá de denunciar a sua proveniência. O esforço que o autor se propõe fazer visa encontrar uma plataforma que torne entendível pelos que não sejam crentes a coerência do discurso cristão. «O exercício é este: ousar pensar como se a Trindade existisse (etsi Trinitas daretur). Talvez assim se (re)descubra o que é isso de Deus ser uno e trino, mas como uma relevante chave de leitura do que somos nós e do que é o mundo». E essa chave de leitura é feita partindo da experiência que todos fazemos de que estamos em ligação uns com os outros. Tudo interage, tudo se relaciona, tudo existe em virtude dos outros. Em Deus, essa interação que se faz enquanto encontro de identidades que só são na medida em que se unem é infinita. E é a condição em que uno e múltiplo coexistem. Como na natureza, em que tal é sucessivo, por motivo da finitude da criação, mas que em Deus é simultâneo. Somos, na medida em que somos com os outros. Deus é a origem dessa condição que a nossa experiência nos mostra ser a nossa condição de possibilidade de existirmos. Só existimos em virtude dos outros. Sem eles, era impensável a nossa existência. Esta experiência que todos fazemos da necessidade do outro, da alteridade como condição de possibilidade de emergência da identidade cria-nos o terreno fértil para o reconhecimento da legitimidade da fé num Deus Uno-Trino. Fazemos, assim, um percurso ascendente, a que se sucede, no pensamento de Alexandre Palma, um segundo percurso, de sentido inverso.

Para compreender esse segundo percurso, é necessário pressupor a ideia, sustentada por Romano Guardini, de que «quem sabe de Deus conhece o homem». Descobrir a natureza trinitária de Deus significa, então, num segundo momento, entender que o limite, aquilo a que a linguagem religiosa chama «pecado», é o fechamento da criação em si mesma, a anulação da dimensão da alteridade.

É fácil compreender, à luz desta síntese, que a coragem que assistiu à criação desta obra saiu compensada. Não será excessivo concluir que urge reconquistar a consciência da natureza trinitária de Deus como condição para a salvaguardar da diversidade, da alteridade, da humanidade, na sua condição de ser-com-os-outros, de cujo dinamismo participa toda a criação. Uma tal descoberta terá, necessariamente, de inaugurar uma outra leitura ecológica e antropológica, na senda, aliás, do que sempre procuraram salvaguardar os dogmas cristãos: que a condição humana se faz na tensão entre o agora e o ainda não, entre o ser e o ainda não ser, entre o eu e o tu, sendo que, quando se perdeu esta tensão, por sobreposição de alguma das dimensões, então, o próprio humano esteve em risco. O dogma cristão sempre se situou neste difícil equilíbrio. O que o torna tão exigente, mas também tão desafiante.

Um livro para ler e reler… Pois podemos falar do que se considerava um enigma e, afinal, é mistério. Porque mistério é a condição de uma realidade tão rica que podemos abordá-la sabendo que sempre algo nos transcende e, por isso, interpela a continuar a procurar.

O mistério cristão não pode aquietar, antes inquietar. Podemos falar disso e não estamos impedidos, contra todos os que teimam em fazer do dogma cristão um discurso fechado ou retido na bruma do tempo. Do dogma terá de resultar vida, sob pena de ser letra que, por ser sem significado para o homem que a lê, tornará a fé insignificante. E essa é a genialidade desse livro: renovar a vida que o dogma protege. De tal modo assim é que o título do livro poderia ser, na contracapa, após toda a leitura feita, «A Trindade é um mistério, razão pela qual podemos falar disso».

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