Sáb. Mai 24th, 2025
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Rubrica dedicada à reflexão sobre o dever de cuidar de todos e os riscos de legalizar a eutanásia

Tiago Azevedo Ramalho

Textos anteriores: Introdução (nn.º 1-3). I. A terra em movimento. A acção dos Tribunais Constitucionais (nn.º 4 e 5).

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– 6. A acção do Supremo Tribunal do Canadá. Objecto. Começamos a nossa abordagem pelo Acórdão Carter c. Canadá, proferido pelo Supremo Tribunal do Canadá em 2015. Ressalvo apenas que, neste como nos demais arestos analisados, desconsiderarei um conjunto de questões que se afiguram de pouco relevo para a reflexão global: questões estritamente processuais (por ex. vicissitudes dos recursos interpostos); questões incidentais de pouco relevo para a apreciação do fundo do problema; e também a descrição de elementos relativos à condição de saúde – sempre gravemente fragilizada – de alguns dos envolvidos nos processos como interessados na legalização da eutanásia ou a da ajuda ao suicídio.

No caso que subiu à apreciação do Supremo Tribunal canadiano, o objecto de fiscalização constitucional foi art. 241.º, b) do Código Criminal («É culpável de um acto criminal e passível de prisão até ao máximo quem, conforme os casos: (…) b) ajudar ou encorajar alguém a dar a morte a si próprio, independentemente de o suicídio se seguir ou não.»), assim como o art. 14.º do mesmo diploma («Ninguém tem o direito a consentir que a morte lhe seja infligida, e um tal consentimento não afecta a responsabilidade penal de uma pessoa por quem a mote possa ser provocada a quem deu esse consentimento»), nas versões então vigentes, que não exceptuavam em nenhumas circunstâncias da incriminação penal a prática de eutanásia e da ajuda ao suicídio [5; 19; 40] [entre parênteses rectos são colocados os parágrafos do acórdão correspondentes].

Parâmetro de controlo seria o reconhecimento do direito à vida, à liberdade e à segurança da pessoa, constante do art. 7.º da Carta Canadiana de Direitos e Liberdades de 1982 («Todos têm direito à vida, liberdade e segurança da sua pessoa e tal direito não pode ser constringido senão em conformidade com os princípios de justiça fundamental.»), e da igualdade perante a lei, constante do art. 15.º da mesma Carta (é o seguinte o seu primeiro parágrafo: « A Lei não faz distinção de pessoas e aplica-se igualmente a todos, e todos têm direito à mesma protecção e ao mesmo benefício da lei sem discriminação, em especial em razão da raça, origem nacional ou étnica, cor, religião, sexo, idade ou deficiências mentais ou físicas»). Substancialmente, configura o Tribunal a questão como de conflito entre «a autonomia e a dignidade de um adulto capaz que procura mediante a morte uma solução para problemas de saúde graves e irremediáveis» e «o carácter sagrado da vida e a necessidade de proteger as pessoas vulneráveis» [2].

Sem prejuízo do estilo mais circunspecto da parte restante do acórdão, assinala-se a opção de incluir no primeiro parágrafo – isto é, de fazer iniciar o Acórdão com – a exposição de um falso dilema emotivista de óbvia intenção retórica. Nele se lê: «No Canadá, constitui um crime ajudar alguém a colocar fim aos seus dias. Em consequência, pessoas grave e irremediavelmente doentes não podem requerer a ajuda de um médico para morrer e podem ser condenadas a uma vida de sofrimentos agudos e intoleráveis. Ante uma tal perspectiva, oferecem-se-lhes duas soluções, seja colocar fim prematuramente aos próprios dias, muitas vezes por meios violentos ou perigosos, seja sofrer até que morram de causas naturais. A escolha é cruel.» [1]

– 7. Cont. O juízo. – Entende o Tribunal que um juízo de fiscalização da constitucionalidade implica que se faça uma dupla apreciação.

Em primeiro lugar, deve aferir-se se a proibição da eutanásia e da ajuda ao suicídio viola só por si direito à vida, à liberdade e à segurança da pessoa, ou o princípio da igualdade diante da lei.

Em segundo lugar, e caso se dê uma resposta afirmativa, se tal violação está eventualmente justificada pela protecção de outros bens igualmente dignos de tutela.

Quanto àquele primeiro ponto [54-90], sustenta-se que o direito à vida não pode ser interpretado num sentido qualitativo tal que imponha a admissão da eutanásia ou da ajuda ao suicídio. Semelhantes considerações ligadas à «autonomia e a qualidade de vida dizem respeito aos direitos à liberdade e à segurança» [62]. Mas se do direito à vida não decorre a admissão de qualquer uma daquelas práticas, também não resulta, no entender do mesmo Tribunal, uma sua proibição tutela, da qual «resultaria uma “obrigação de viver”» [63]. A «sacralidade da vida» não exige a preservação da vida em todas as circunstâncias [63].

Já os direitos à liberdade e segurança seriam violados: «A reacção da pessoa a problemas de saúde graves e irremediáveis é primordial para a sua dignidade e a sua autonomia. A Lei permite a pessoas que se encontrem nestas situações requerer uma sedação paliativa, recusar alimentação e hidratação artificiais ou exigir que se removam equipamento médico de manutenção da vida, mas nega-lhes o direito de requerer a ajuda de um médico para morrer. A Lei priva estas pessoas da possibilidade de tomar decisões relativas à sua integridade corporal e aos cuidados médicos e assim invade a sua liberdade. E ao deixar pessoas como a Sr.ª T. sujeita a sofrimentos intoleráveis, coloca em causa a segurança da sua pessoa.»  [66] A admissibilidade da eutanásia e da ajuda ao suicídio é vista como mais uma possibilidade de reforço da autonomia na linha de outras amplamente reconhecidas, como o regime do «consentimento informado» [67].

Fixada a presença de uma restrição à liberdade e à segurança, passa-se à análise da eventual justificação da restrição. Na hora de determinar qual o escopo deste regime restritivo, entende ser ele o de evitar que «as pessoas vulneráveis sejam incitadas a suicidar-se num momento de fragilidade» [78]. Embora não se possa concluir que tal proibição seja arbitrária, uma vez que é racional admitir que «a proibição da ajuda ao suicídio ajuda claramente à promoção daquele objectivo» [84], a restrição é tida por excessiva [85], na medida em que tem por consequência que a lei possa aplicar-se a quem em nenhum caso se possa qualificar como pessoa vulnerável [86]. Depois de tal conclusão, dispensa portanto o Tribunal a análise de outros critérios de aferição da justificação da restrição [89-90], ou a necessidade de apurar a violação do princípio da igualdade [93].

Concluindo-se por uma tal violação, injustificada em vista da protecção da liberdade e da segurança, passa a apurar-se a restrição pode ainda assim ser tida por proporcionada em vista dos fins que pretende alcançar [94-123]. Na jurisprudência canadiana, são três os parâmetros de controlo: (a) adequação dos meios adoptados aos fins visados; (b) afectação mínima do direito em causa; (c) proporcionalidade entre. os efeitos prejudiciais e benéficos.

Ainda que o Tribunal, na linha de reflexões anteriores, conclua que há adequação racional dos meios propostos aos fins intencionados [100], já não considera haver uma afectação mínima dos direitos em presença. Fim deste último parâmetro de controlo é a aferição de se existem ou não meios menos onerosos de satisfazer o fim em causa [102]. É do entendimento, porém, que a protecção das pessoas vulneráveis que irreflectidamente procuram a eutanásia ou ajuda ao suicídio pode obter-se por vias onerosas do que pela proibição absoluta daquelas práticas. Acompanhando a decisão do juiz de primeira instância, entende que é possível a «um médico qualificado e experimentado avaliar de maneira segura a capacidade do paciente e o carácter voluntário da sua decisão, e que a coerção, o abuso de influência e ambivalência podem ser avaliadas de maneira segura no quadro deste processo» [106, 116]. Questões como as da «rampa deslizante» ou o «enfraquecimento das faculdades cognitivas, depressão ou outras doenças mentais, coerção, abuso de influência, manipulação psicológica ou emocional, preconceito sistémico (diante pessoas idosas ou deficientes) e a possibilidade de ambivalência ou de diagnóstico erróneo como factores susceptíveis de passar despercebidos ou de causar erros na avaliação da capacidade», com a consequência de não ser possível apurar com segurança quem é e quem não é vulnerável foram especificamente suscitadas [114], mas consideradas não devidamente sustentadas nos meios de prova disponíveis [115-116], sendo passíveis de avaliação em concreto [117], e não sendo fundados os riscos de «derrapagem» da regulamentação [120]. Concluindo-se pela ausência de uma afectação mínima dos direitos em presença, a restrição é tida por injustificada, não sendo necessário o confronto entre os efeitos benéficos e prejudiciais da Lei [122-123].

Em resultado, decide o Supremo Tribunal que a alínea 241.º, b), e o art. 14.º do Código Criminal atentam de maneira injustificada contra o art. 7.º da Carta e não produzem efeitos na medida em que proíbem a ajuda de um médico à morte de uma pessoa adulta capaz que (1) consinta claramente em colocar fim à sua vida; e que (2) esteja afectada por problemas de saúde graves irremediáveis (incluindo dor, doença ou deficiência) [illness, disease or disability/ affection, maladie, handicap] que lhe cause sofrimentos persistentes que lhe sejam intoleráveis na condição em que se encontre»  [147; ver também 4 e 127].

Note-se que o Acórdão Carter c. Canadá não foi o primeiro no qual aquelas regras penais foram objecto de fiscalização. Já antes, embora com diferente resultado, a questão fora suscitada no Acórdão Rodriguez c. British Columbia/ Colombie-Britannique, de 1993. Parte da fundamentação do Acórdão Carter c. Canadá é justamente destinada a expor por que razão entende o Tribunal razoável uma nova pronúncia: cf. os parágrafos 5; 42 a 48]. Para assinalar o diferente contexto em que os dois acórdãos foram proferidos, não foi o Tribunal indiferente ao facto de em 1993 a eutanásia ser «universalmente» proibida, ao contrário do que ocorria algumas décadas depois (diferença, já assinalada, entre o clima aquando da primeira ou da segunda vaga de legalização: cf. o n.º 4) [8]. Simplesmente: o que no Acórdão Rodriguez c. British Columbia/ Colombie-Britannique, de 1993, era visto como um regime razoável para satisfazer os fins a que se propunha (embora com um Supremo Tribunal muito dividido), era no Acórdão Carter c. Canadá visto já como excessivamente limitador daqueles direitos reconhecidos na Carta Constitucional.

– 8. A legislação posterior: 2016 e 2021. – Na sequência da declaração de invalidade por parte do Tribunal Constitucional canadiano, foi adoptada legislação penal de legalização da eutanásia e do suicídio assistido. A primeira legislação surgiu em 2016 (Bill C-14), tendo sido já alargada no seu âmbito em 2021 (note-se que o Quebeque havia aprovado legislação em 2014, embora também tivesse havido tentativas goradas, entre 1991 e 2010, de legalizar a «ajuda a morrer» por via legislativa [6]). De acordo com o agora art. 241.1 do Criminal Code/ Code criminel, admite-se a «ajuda médica a morrer» na dupla vertente de eutanásia («administrar a uma pessoa (…) uma substância que cause a sua morte») e de ajuda ao suicídio («prescrever ou fornecer uma substância a uma pessoa, a seu pedido, a fim de que ela a administre cause assim a sua morte»). Entre outros pressupostos, a prática é admitida para maiores de 18 anos, com problemas de saúde graves e irremediáveis, que o requeiram sem pressões exteriores (art. 241.2 do Criminal Code/ Code criminel). Na definição da situação de saúde grave e irremediável prevê-se, entre outros aspectos, que a morte natural seja razoavelmente previsível (241.2 (2) d)).

Em 2021 (Bill C-7), também em resultado de uma decisão do Supremo Tribunal do Quebeque (Truchon c. Procureur général du Canada), o requisito da previsibilidade da morte natural deixa de ser colocado. Entre outras alterações ao regime foram introduzidas, admite-se, em dadas circunstâncias, a renúncia à necessidade de consentimento final à eutanásia (novo (3.2) ao art. 242.2).

Finalmente, invocando-se para o efeito o respeito pelos direitos das pessoas com deficiência, admite-se – em razão do princípio da igualdade (!)– o acesso à eutanásia a quem tenha doença mental (cf. a redacção de 1 (2.1), com a restrição de entrada em vigor constante do art. 6.º do diploma).

 

– 9. Algumas reflexões. – Da evolução canadiana podemos retirar já algumas conclusões:

(a) A primeira respeita ao significado da pronúncia de um Tribunal com função de fiscalização da constitucionalidade. A conclusão pela inconstitucionalidade de um regime proibitivo em absoluto da eutanásia e da ajuda ao suicídio tem por significado privar em dados termos da possibilidade de deliberação política uma tal matéria.

Tal comunidade política deixa doravante de ser livre, por conseguinte, de se dar a si um regime totalmente excludente daquelas duas possibilidades, por se entender um tal regime violador de posições jurídicas especialmente garantidas a nível constitucional.

(b) Sendo a questão tratada a partir do ângulo da autonomia, diluem-se as fronteiras entre a eutanásia e a ajuda ao suicídio, por um lado; e entre formas (legítimas e pacíficas) de recusa de tratamento e a provocação intencional da morte de alguém, por outro.

(c) Sublinha-se, depois, o exclusivista paradigma autonómico que preside a todo o juízo. Como fundamento último, relevante será apenas e sempre a autonomia individual. Mesmo uma eventual proibição da eutanásia e da ajuda ao suicídio apenas seria de admitir em vista da protecção da própria autonomia individual, nomeadamente quando apta a prevenir que a prática de tais actos tenha lugar por quem não pode exercer a sua liberdade autonómica de modo seguro e esclarecido (prevenção do suicídio não devidamente ponderoso).

(d) Ainda que o fundamento último seja o respeito pela autonomia individual, a concreta admissão da eutanásia e da ajuda ao suicídio está dependente de outros factores, nomeadamente para quem se encontre em situação de doença grave e irremediável.

(e) No decurso dos anos, detecta-se a tendência para o progressivo alargamento de casos em que se admite a legalidade da eutanásia e da ajuda ao suicídio.

(f) Finalmente, não parece assumir qualquer relevância na economia argumentativa o significado social da admissão da eutanásia e da ajuda ao suicídio. Precisamente porque o tema é perspectivado somente a partir da leitura autonómica individual, não se oferece espaço ao tratamento de questões de índole social que o tema necessariamente convoca: o significado da legalização de qualquer uma daquelas práticas para a redefinição do sentido social da vida humana; o seu relevo educativo; e, finalmente, a arrogação do ius uitae necisque, direito de vida e de morte, por parte da comunidade política, ao alargar deste modo as fronteiras do poder publicamente organizado.

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Próximo texto: 26 de Julho. O Tribunal Constitucional italiano.


Imagem de Sang Hyun Cho por Pixabay