Ter. Fev 18th, 2025
As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação

Tiago Azevedo Ramalho

 

Segundo parece, discutir-se-á na Assembleia da República, na 6.ª-Feira próxima, um projecto de lei da iniciativa do Partido Socialista – outros de teor aproximado foram também apresentados por  diferentes forças políticas – que pretende modificar o regime do aborto provocado: em especial, permitindo a sua provocação intencional por opção da mulher nas primeiras doze (e não dez) semanas de gestação. É iniciativa legislativa que não surpreende, uma vez que mimetiza à escala nacional a acção de movimentos doutras paragens (sobre a qual já se escreveu aqui).

Do projecto pouco há a dizer. Salvo talvez a respeito de um ponto que não deixa de impressionar: que um partido político que se pretende de poder, com pretensão de alguma razoabilidade e equilíbrio das posições por si sustentadas, consiga compor uma exposição de motivos em sede do aborto provocado sem por uma vez referir a vida intra-uterina a que por ele se provoca termo. Uma acção que não é contra algo, mas contra um alguém.

Não é assim apenas entre nós. Justamente por isso surpreendeu a publicação, em Novembro último, de um esclarecido manifesto intitulado «Um corpo, duas pessoas» («Ein Körper, zwei Personen») por um conjunto de médicos e juristas (também juízes das mais altas instâncias alemãs) nas páginas do Frankfurter Allgemeiner Zeitung. Que o FAZ é um jornal de assinalável pluralidade, e que por isso até para reflexões sensatas reserva algum espaço, é ponto sobejamente conhecido. Mas não deixa de surpreender que, anno Domini 2024, ainda seja possível uma tomada de posição tão clara num periódico nacional de um dos grandes Estados europeus.

Assim começa: «O actual momento de reforma social e jurídico-política com o fim de uma maior ou menor descriminalização integral da interrupção da gravidez é caracterizado pela notória unilateralidade de perspectiva, pelas premissas desadequadas e pelas conclusões falaciosas.» Pois haverá que considerar devidamente a causa da dificuldade do tema do aborto: o facto biológico de, durante o período da gravidez, a vida de uma pessoa, já existente mas por nascer, estar fisicamente na dependência da vida de uma outra, a gestante. Um corpo sob outro corpo, duas pessoas: assim não fosse e o aborto não suscitaria, na verdade, nenhuma especial dificuldade moral ou jurídica. Por isso pode o próprio feto ser paciente de uma intervenção médica autónoma, dirigida à promoção da sua saúde – como pode um médico, em ordem ao seu bem e à sua integridade como paciente, recusar-se à participação num acto abortivo pedido por uma outra paciente.

Este facto biológico – prosseguem os signatários – não pode ser moral e juridicamente indiferente: «Quem é pessoa, é-o desde o princípio. A Lei Fundamental reconhece a qualquer pessoa, sem excepção, dignidade». Por essa razão, o problema do aborto é sempre de índole interpessoal, sem que possa ter lugar um satisfatório equilíbrio de concordância prática, porque a interrupção da gravidez «tem por consequência incontornável a morte da criança». Diante deste estado de coisas, nada recomendará o aumento do espaço de liceidade do aborto – pelo contrário, o elevado número de abortos provocados anualmente é sinal bastante de que os actuais regimes jurídicos, em qualquer dos limiares de aborto por decisão da mulher que possam definir, não colocam barreiras excessivas ao acesso não criminalizado a esta prática. Nada depõe, portanto, no sentido da sua facilitação. Pelo contrário, os movimentos contemporâneos de ainda maior liberalização do aborto desenvolvem-se ao arrepio de uma cada vez maior consciência da identidade e singularidade do embrião desde as fases introdutórias da gravidez.

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Que possa haver um projecto de lei que desconsidere ostensivamente tudo o que, até há tão pouco, se considerava evidentemente fundante da antropologia do ocidente europeu – que possa haver um projecto de lei que ostensivamente ignore a posição de uma das partes de um conflito interpessoal – que possa haver um projecto de lei que ostensivamente desvalore dados básicos da biologia para a formulação de juízos morais e jurídico-políticos – perante tudo isto, ao leitor cabe ajuizar onde estão os que conservam, e onde estão os que subvertem, os fundamentos centrais da nossa comum ordem de convivência.


Imagem de Rudy and Peter Skitterians por Pixabay