Sáb. Mar 22nd, 2025
‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Parceria com a revista ‘Mundo Rural’

Luís Manuel Pereira da Silva*

Continuemos o nosso regresso a Ítaca com o sonho do Éden.

Desta vez, enfrentando uma questão que, desde há muito, nos vem intrigando: a tragicidade da beleza, na cultura grega.

Os gregos tinham como grande ideal humano o ‘belo e o bom’, designado como ‘kalos kai agathos’.

Se olharmos para o que propõe a cultura judaico-cristã, constataremos que também o desejo de atingir o belo e o bom é omnipresente. Deus, após cada ato criador, contempla a obra e, diz-nos o relator bíblico que ‘viu que era bom’.

Noé, Moisés, Maria ‘acharam graça diante de Deus’, numa alusão ao reconhecimento da bondade que se manifesta como bela aos olhos de Deus.

Se compararmos, porém, o modo como é apreciada a beleza, numa e noutra culturas, teremos de constatar a densidade trágica com que a vê a cultura grega.

Helena, a mulher mais bela do mundo, é causa da trágica guerra de Troia, após Páris tê-la raptado, dando origem a um longo conflito entre troianos e gregos.

Narciso inebria-se com a sua beleza, projetada nas águas paradas, aí morrendo de sede e fome.

Por oposição, a beleza, no contexto bíblico, é redentora. Não será fortuitamente que, na genealogia de Jesus, apresentada por Mateus, de sete em sete gerações, apareça uma mulher.

Do mesmo modo, no capítulo XII do Apocalipse, o dragão, símbolo do mal, coloca-se diante da mulher por saber que dela virá a salvação…

Tragédia, no contexto grego.

Redenção, no contexto judaico-cristão.

Esta constatação tem-nos intrigado.

E vislumbramos a via de compreensão desta dupla forma de olhar a beleza num detalhe a observar.

Na cultura grega, o ideal fica-se pelo ‘belo e bom’. Falta-lhe aquilo que os escolásticos virão a designar como os ‘transcendentais do ser’: o belo, o bom e… o verdadeiro!

O ideal grego parece omitir esta particularidade com consequências significativas. O belo e o bom tornam-se redundantes e fechados sobre si mesmos. Não é, aliás, isso que Narciso descreve?

Falta-lhes a abertura que o ‘verum’ (‘verdadeiro’) comporta.

Aliás, a mulher que o dragão enfrenta está grávida. A verdade da beleza feminina abre-se à fecundidade da vida. Não será, por isso, casual que a Bíblia abra com as narrativas que nos falam da árvore da vida e termine referindo a ‘árvore da vida’, nos últimos versículos do Apocalipse.

Falar da ‘vida’ quebra a circularidade da beleza ‘grega’, autossuficiente e encerrada em si: abre-a a algo maior, a algo de que ela fala, que se torna presente mas nunca se esgota no aqui.

A beleza é, assim, presença de uma ausência para que ela sempre remete: é fecunda, é dinâmica, é aberta para além de si. A tentação de Adão fora, aliás, a de se fechar em si mesmo e, por isso, a nudez se torna motivo de vergonha.

Helena era bela. Mas não era mais do que bela! A beleza ficava encerrada em si e a caducidade da existência torna essa beleza efémera.

A beleza, numa perspetiva judaico-cristã, fala do sublime, do Belo que é, também, o Bem e a Verdade. E isso faz da beleza um caminho, não uma meta.


Imagem de PDPics por Pixabay


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura e autor de ‘Bem-nascido… Mal-nascido… Do ‘filho perfeito” ao filho humano’
Artigo originalmente publicado em www.teologicus.blogspot.com