As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação
Tiago Azevedo Ramalho
[Primeiro texto: aqui.]
-12. O tempo que se abre. – Se a questão do aborto não tem, de nenhum modo, por que ser codificada em chave exclusivamente religiosa, deve porém reconhecer-se que, sem uma motivação de tal índole, dificilmente poderá haver uma inflexão das tendências agora dominantes. Aliás, esta evolução a que assistimos ao longo do último meio século é coeva, não certamente por acaso, da retracção da influência pública da religião cristã na cultura ocidental. Retracção essa que justamente conduziu a que aquelas soluções que viram o seu espaço comprimido no longo arco milenário de forte influência cristã voltassem agora a expandir-se.
Estamos diante de matéria em que, com toda a propriedade, se pode falar de uma regressão. Não estão os regimes jurídicos dos Estados ocidentais a caminhar para uma nova biopolítica, mas a regressar àquela que fora a dominante antes da eclosão do evento cristão. Aceitava-se então a liceidade do aborto, do infanticídio, da exposição (abandono) de recém-nascidos. Caracterizava aliás o ocidente europeu a específica recusa desta dimensão da antiguidade clássica: admirou-lhe a estética, recebeu a sua filosofia, mimetizou os seus modos de organização prática, mas recusou a implacabilidade da sua antropologia – o que Nietzsche, que com ela concordava, profundamente compreendeu. Por isso não pode senão causar estupefacção o modo como, em Roe vs. Wade, se começa a narrar a tradição ocidental de resposta ao problema do aborto a partir das perspectivas do mundo antigo – sem nenhum caveat, nenhuma contextualização, qualquer reserva –, como se aí radicasse a antropologia ocidental. Sem prejuízo: porque no mundo da cultura, ao contrário do que ocorre na biologia, podem os filhos definir quem desejam por pais, talvez haja nesse atrevimento algum acerto.
Escrevia-se há pouco: não sendo a questão do aborto exclusivamente religiosa, dificilmente poderá haver, sem uma motivação de tal índole, uma inflexão das tendências agora dominantes. Quem, com efeito, se predisporá a tomar posição, por mais razoável que ela seja, contra uma assinalável maioria, sabendo que é provável não contar com nenhuma solidariedade na sua defesa? Antevendo que, na melhor das hipóteses, será tido como simplesmente estulto? Tendo ao mesmo tempo a clara consciência de que, se porventura outros méritos lhe permitam o gozo de alguma respeitabilidade, a qualquer momento, e numa hora crítica, alguém zelosamente se disporá a rebuscar no fundo da gaveta o registo de posição em tempos tomada nesta matéria, e de a agitar ao vento qual prova irrefutável de uma soberana insensatez? E porque haveria de ousar tomar posição se, predispondo-se a assumir o risco destas contra-indicações, não divisa nenhuma probabilidade razoável de a sua acção poder dar fruto em prazo útil?
(Continua.)
Imagem de Gerd Altmann por Pixabay