Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra…
(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato…)
Alberto Ferreyra*
A noite desce, com as águas do Fervença, no planalto onde repousa Bragança.
As águas do rio guardam mistérios que o seu marulhar segreda aos ouvidos mais atentos.
A Carlos foi dado o dom de os ouvir… Mas a maldição que o obriga a esconder-se impede-o de os contar.
O frio vem com o cair da noite.
Carlos senta-se onde sempre fez leito na sua já vetusta vida: nas ameias que encimam a porta do sol.
Ao longe, o Fervença…
Das suas águas, como se de um Moisés de agora, foi recolhido, depois de nelas abandonado pela mãe, horrorizada com a sua descomunal cabeça de fartas sobrancelhas.
Nem a sua espontânea e precoce simpatia o livrou do maldito fado.
Nas águas pouco profundas, foi deitado à sorte que levou até às mãos já enrugadas da ti’ Matilde ‘Riscada’. A sua face marcada por um rosado sinal valia-lhe a alcunha e afastamento.
Raramente era vista…
Na sua casita, perdida na margem esquerda do rio, afastava-se dos que do seu ‘riscado’ rosto gracejavam.
Por isso, quando a sua casa se encheu do choro de uma criança abandonada de novo amada (ou, talvez, amada pela primeira vez…) ninguém notou.
E Carlos cresceu.
Nos poucos tempos que durou a sua passagem pelos bancos da escola, cunharam-lhe a alcunha com que passou a encobrir-se: ‘Carletos’ para rimar com ‘caretos’…
O tempo tudo traz e, com ele, a sorte, a morte e a idade, bem certo!
Ti’ Matilde partiu e Carlitos – ‘Carletos’… – recolheu-se à sombra da ausência do burgo dos humanos, para se encobrir no lugar dos mistérios.
Sob a capa dos caretos com que o quiseram comparar, fez a sua própria máscara e nela se enfantasmou…
O seu novo lar fez-se das ameias do cerco castelar onde a vida decorria sob o seu atento olhar.
– ‘Entre os humanos que se têm sem máscara, muitas são as caretas de que se faz o viver’, parecia pensar Carlitos sempre que por ‘carletos’ se fazia passar.
Do alto da sua morada, assistiu ao discutir e afogar de uma desavença de amor.
Já sem vida, o corpo da rejeitada foi entregue às águas, para que, no seu murmurejar, se ocultasse o crime.
Detentor do segredo, mas impedido, por maldição, de o contar, sob a careta de Carletos, todos os pensamentos se moveram a mais vertiginosa velocidade do que as águas do rio.
– Como dizer de que mãos se fez aquele finar?
A cabeça pousada sobre a mão escondida na capa e manto de careto, logo ali viu como mostrar a todos que criminoso quisera fazer crer que o afogamento fora acidental.
Dos farrapos de que se vestiam os seus andrajos, foi retirando, tira a tira, os sinais que depositava no local onde tudo se passara.
Quando todos dormiam, descia do seu lar e depositava, na margem do rio, um pedaço – um farrapo, afinal – que, conjugado a outros, começava a tomar a forma de um corpo.
Carletos estava a deixar um sinal.
Neste entretanto, a família de J. e M. fora de férias ao planalto transmontano.
Curiosa, como sempre, M., com o seu branquinho (o periquito detetive que sempre trazia consigo…) no ombro, vinha com o desejo de ouvir esta história que lhe tinham dito ser mistério insolúvel.
M. pediu aos pais que os levassem à margem do rio.
Ali, encontraram a forma de um ‘careto’ que não parecia findar de se acrescentar. Em cada dia, ao amanhecer, mais farrapos apareciam somados aos do dia anterior.
M. reparara, porém, que a cor do careto construído por enigmática sombra ou fantasma da noite não seguia os habituais padrões garridos. Era azul e amarelo…
Aquele detalhe intrigara-a e aguçara a sua curiosidade.
Passou a noite, inquieta.
Nada parecia ajudar a desvendar aquele enigma que o seu misterioso cúmplice parecia querer deixar-lhe nas mãos.
De cabeça em água, acompanhava os pais pelas ruas de Braganças, quase ausente. O corpo ia, mas a mente não estava.
Frente ao Domus Municipalis, onde tanto desejava ir, estava como se de um fantasma se tratasse.
– Espera! O que é isto?
Uma bandeira da cidade agitava-se ao vento.
O brasão repousava sobre o azul e amarelo.
Seria aquilo uma coincidência?
Só havia um modo de confirmar: visitar a sede da Câmara.
Estava o parceiro misterioso a encaminhá-la para o local onde estas cores são símbolo coletivo?
– Vamos à Câmara. – pediu M.
Branquinho saiu-lhe do ombro e antecedia-os. Parecia compreender que estavam perto de desfazer o nó.
O coração batia-lhe velozmente, no peito, e parecia querer sair-lhe pela boca.
Ao chegarem ao destino, o parceiro silencioso facilitara-lhes a vida.
Dois farrapos azuis e amarelos enfeitavam o carro do presidente da autarquia.
Hoje, na margem do rio Fervença, o local onde o parceiro misterioso tecera o careto silenciosamente eloquente está vazio.
Ninguém sabe para onde foi levado…
Mas Carlitos tem, agora, uma muda mas fiel companhia no seu encoberto lar.
Antes de o sol se pôr sobre a sua porta, duas longas sombras se estendem até a rio.
…Nunca ninguém viu aqueles dois por quem a luz se enrola e abafa, gerando sombra, mas todos sabem que lá moram.