Sáb. Out 12th, 2024
Lugares pré-históricos no território da atual Diocese de Aveiro [concelhos de Estarreja, Murtosa, Sever do Vouga, Albergaria-a-Velha, Oliveira do Bairro, Águeda, Aveiro, Ílhavo, Anadia e Vagos] e do Distrito de Aveiro (inclui concelhos da Diocese do Porto – Oliveira de Azeméis, São João da Madeira, Santa Maria da Feira, Vale de Cambra, Espinho, Castelo de Paiva, Arouca, Ovar – e da Diocese de Coimbra – Mealhada)
A Comissão Diocesana disponibiliza lista de lugares pré-históricos megalíticos da Diocese e do Distrito de Aveiro e agradece aos leitores contributos (culturadiocesedeaveiro@gmail.com) para que se aumente esta lista.
Diocese de Aveiro
Anta de Cerqueira | Sever do Vouga
Monumento Megalítico de Chão Redondo | Sever do Vouga
Pedra da Moura | Sever do Vouga
Monumento megalítico do Souto do Coval | Sever do Vouga
Anta da Capela dos Mouros | Sever do Vouga
Mamoas do Taco | Albergaria-a-Velha
Mamoa dos Açores | Albergaria-a-Velha
Diocese do Porto
Anta do Casal-Mau | Arouca
Dólmen da Aliviada | Arouca
Anda do Vale da Rua | Castelo de Paiva
Mamoa da Quinta da Laje | Santa Maria da Feira

 


Luís Manuel Pereira da Silva*

 

E se a teologia tivesse uma palavra a dizer sobre a pré-história?

A reflexão aqui reunida nasce de uma circunstância quase casual (para um crente, os ‘acasos’ são os interstícios onde se esconde a providência…). Numa viagem ao Norte, a iniciar um curto período de férias, encontrei um número monográfico da revista Super Interessante, ‘edição biblioteca’, dedicado ao ‘Portugal Pré-histórico: monumentos e arte rupestre no nosso país’. Um número ricamente ilustrado e com uma coletânea de excelentes textos de reputados especialistas. A qualidade gráfica e o currículo dos autores convenceram-me. Somados, bem certo, ao meu insaciável desejo de explorar novos terrenos, na busca de mais uma área de encontro entre a teologia e os diversos mundos da cultura.

Muitos preconceitos têm alimentado uma hipotética indiferença entre estes dois ‘mundos’ que a história da ciência, por um lado, e a natureza própria do cristianismo como religião do ‘lógos’, por outro, não confirmam, porém.

Basta lembrar nomes de homens da Igreja[1] como Nicolaus Steno (1638-1686), no âmbito da geologia, Giambattista Riccioli (1598-1671), na astronomia e na física, Francesco Maria Grimaldi (1618-1663), nos estudos de física e matemática, mas, principalmente de selenologia (sobre a lua), Roger Boscovich (1711-1787), em múltiplas áreas, pois era, reconhecidamente, um polímata (dominava matérias como astronomia, física, matemática, ótica, etc.) ou, mais recentemente, Teilhard de Chardin (1881-1955), uma das figuras cimeiras da história da arqueologia e da paleontologia e sempre revisitada quando a matéria é ‘diálogo entre ciência e cristianismo’. Os seus livros continuam, ainda hoje, a ser de leitura obrigatória para quem quer compreender que e como é possível o diálogo entre a religião cristã e a ciência. Talvez menos conhecido, da sua biografia, seja o seu envolvimento nas investigações que, em 1929, conduziram à descoberta, na China, do Homo Erectus. O seu contributo não foi, como facilmente se concluirá, meramente teórico; não seria pouco, porém, se a tal se confinasse, mas, com efeito, o seu envolvimento científico era real.

Também Aveiro guarda, como um exemplo a não esquecer deste diálogo fecundo entre ciência e religião, o nome do Padre Póvoa dos Reis (1907-1991)[2], nascido em Eirol, mas incardinado na diocese de Coimbra, que realizou parte significativa dos seus trabalhos científicos e pastorais na sua terra natal, tendo aí criado um ‘campo de investigação’ que tomou a designação de IDESO, Instituto D. Ernesto Sena de Oliveira, bispo de Coimbra entre1948 e 1967). Os seus estudos na Ria de Aveiro valeram-lhe reconhecimento internacional e o registo, na taxonomia internacional, de espécies desconhecidas.

Mas os preconceitos continuam a existir. Muitas são as resistências ao encontro (que será sempre benéfico para ambos os interlocutores) e diálogo entre ciência e religião.

O que poderá a teologia ter a dizer à arqueologia e ao estudo da pré-história? A resposta não poderá, de modo algum, esgotar-se no esboço de reflexão que aqui reúno. Deverá continuar como interrogação e como despertador para que se prossiga o caminho. Este texto será ajustadamente interpretado se lido como um exercício heurístico, uma genuína partilha de quem se abeira de uma matéria com a atitude de aprendiz, mas também com o risco de quem quer propor um conjunto de hipóteses ponderáveis.

A leitura do número monográfico que suscitou esta reflexão permite fazer, imediatamente, várias constatações: a história da investigação das marcas da pré-história no território que é, hoje, Portugal, teve um franco desenvolvimento nas últimas décadas, o que permite afiançar que, a continuar o impulso e atenção que estas matérias vêm merecendo, da parte das Universidades, autarquias e sociedades científicas (assim como da parte das populações), o número dos monumentos ou lugares megalíticos identificados de Norte a Sul do território continental, que hoje se contam num cifra que ronda os 220, venha a ser avolumado, conjugado com uma melhoria das técnicas de registo e interpretação.

Bem certo que o impulso resultante das descobertas de Foz Côa (a primeira publicação das gravuras do cavalo de Mazouco é de 1981, tendo ocorrido em 1991 a descoberta da Rocha 1 da Canada do Inferno, por Nelson Rebanda e, em 1995, ‘a decisão de a arte nos sítios onde os artistas decidiram produzi-la, e a inscrição na lista do património mundial da UNESCO em 1998’[3]) e as descobertas quase fortuitas, em 1971, ‘quando o etnólogo Paulo Caratão Soromenho pediu a um grupo de estudantes de Lisboa que fossem ver umas “pedras escritas” nas margens do rio Tejo, na região da Vila Velha de Ródão’[4], catapultaram estes temas para a ordem das preocupações mais gerais. O passado mostra que muito do trabalho entretanto reconhecido pelo seu mérito de recuperar da amnésia do tempo as memórias mais remotas da humanidade se devia, fundamentalmente, à dedicação de indivíduos como o Martins Sarmento, em cuja homenagem foi atribuído o nome ao Museu arqueológico, fundado em 1881, em Guimarães. Já então, porém, o papel da igreja foi fundamental, no caso, pela ação do Abade de Tagilde, João Gomes de Oliveira Guimarães, e do Pe. António Caldas, mas contando com a ação determinante do próprio arqueólogo vimaranense Martins Sarmento que possuía uma importante coleção que veio a integrar parte significativa do referido museu.

Hoje, os tempos exigem que sociedade e Estado congreguem esforços para que chegue a bom porto o desafio de recuperar do subsolo do esquecimento as raízes mais profundas da memória humana.

Mas, regressemos, então, à pergunta que nos move: o que poderá ter a teologia a dizer sobre a pré-história? Poderá dar algum contributo para aqueles que são os maiores enigmas que a pré-história reserva?

O ‘estado da arte’ sobre a investigação pré-histórica permite constatar que continua a ser um nó górdio a interpretação sobre porque gravavam, na pedra, os nossos antepassados, os desenhos e símbolos que nos levam a quase ‘quebrar’, hoje, a cabeça para os interpretar. E porque erguiam os monumentos que ‘marcam’ os territórios que, hoje, se nos afiguram como aparentemente inócuos e insignificantes.

Para tal, a reflexão teológica pode dar um contributo não despiciendo.

Para um teólogo, as ações humanas podem ser categorizadas em três ordens: as fúteis, as úteis e as inúteis (‘in’, aqui, assume a função de prefixo de negação, mas a que somo o sentido de ‘meta’, ‘para além de’. ‘Inútil’ significará, neste sentido, o que está ‘para além do útil).

As fúteis definem as ações que, sendo realizadas por um sujeito humano, ocorrem em condições em que o grau de presença consciente do indivíduo se encontra mais diminuída. Sendo certo que não há ações amorais de sujeitos humanos conscientes (a amoralidade é um abstrato, mas sem verificação na realidade concreta, pois toda a ação de sujeitos humanos conscientes é suscetível de leitura moral), pode, contudo, ocorrer que o grau de ‘presença’ seja diminuído por muitos fatores. Acontecem ações fúteis quando o sujeito é movido pelas emoções, pelo medo, por circunstâncias que obnubilam a sua racionalidade. Integram este âmbito as ações realizadas por influência da psicologia de massas ou no contexto de manifestações ditas ‘gratuitas’ da parte de ‘adolescentes’ e jovens ‘inconscientes’. O simples ‘fazer por fazer’, para marcar que se passou por aqui, que se esteve aqui, que se deixou marca de passagem.

Não é improvável que algumas das ações do homem pré-histórico possam ser desta ordem, mas a proliferação das manifestações obriga a levantar outras hipóteses.

A segunda ordem respeita às ações úteis: aquelas de que resulta algo que se pretende.

E, ao colocar as manifestações pré-históricas no âmbito das ações úteis, poderão aventar-se hipóteses de ordem individual, comunitária ou meta-comunitária.

Ler as ações pré-históricas (o registo de gravuras, a criação de megálitos de natureza funerária, etc.) num registo de utilidade pressupõe, imediatamente, a admissão de que estamos perante indivíduos que não se supõem isolados ou sem conexão com o meio e com outros (presentes ou ausentes). Logo supõe um ser intrinsecamente pensado a si mesmo em relação, o que contraria uma certa perceção de que o modo de descrição do passado pré-histórico se fez assente na ideia de indivíduos aparentemente isolados.

No registo de utilidade e enquadrado nesta visão intrinsecamente inter-relacional, as gravuras não são, ainda, realizadas com um intuito intemporal (haveremos de analisar, ao vê-las no registo da ‘in’utilidade). Servem um intuito de comunicação. O homem pré-histórico, naquelas que são as suas formas de se manifestar e exprimir, está a comunicar. Resta saber se algum dia perceberemos, totalmente, o grau de ‘comunicação’ presente nas gravuras. Serão um código, um conjunto ‘idiogramático’, à maneira dos hieróglifos egípcios? E o que comunicariam?

Mas, ainda no registo da utilidade, é possível levantar uma mais ampla hipótese.

Uma das mais intrigantes constatações, ao analisar os cerca de 220 monumentos ou lugares megalíticos já identificados, não é a de que haja características distintas, quando se estuda a sua profusão por todo o território hoje lusitano. O que surpreende é a permanência de alguns traços comuns, apesar das distâncias (que não são as de hoje, em que, em poucas horas, nos deslocamos de um ao outro extremo do país). Como interpretar essa permanência? Que utilidade (estamos nessa fase da nossa análise) pode vislumbrar-se nesta constância?

Num dos textos, da autoria de Elena Morán, sobre os ‘principais monumentos e expressões artísticas pré-históricas na região do Algarve’, levanta-se uma curiosa hipótese que gostaria de alargar: a de que em torno da baía de Lagos existisse um território politicamente organizado, já neste período pré-histórico[5]. Ideia curiosa…

Antes de expor a sugestão de hipótese, importa reconhecer que a receção da investigação pré-histórica continua a enfermar de um defeito que este último artigo procura superar. O homem pré-histórico é retratado como isolado, solitário, com as suas preocupações, mas sem uma estrutura ‘abstrata’ (quase estatal) a organizar a especificidade de cada comunidade e, no interior de cada uma, de cada indivíduo.

Como que parecemos supor o indivíduo pré-histórico, tomado pelos seus medos e mitos, mas sem perspetivar que esses mesmos medos e mitos possam ser herdados, comunicados e perpetuados.

Num registo de ações úteis, e alargando o horizonte para o ‘meta-comunitário’, avento a hipótese de o homem pré-histórico participar numa estrutura de organização ‘ideológica’, ‘conceptual’, ‘religiosa’, ‘de domínio’ e ‘submissão’, em que as manifestações se comunicam e se perpetuam. Ele não comunica para outros tempos: comunica entre si e transmite, por esse meio, impressões sobre o mundo e exerce influência sobre os outros: recebe e transmite influência.

Claro que uma hipótese deste género exige perguntar onde estaria a sede desse domínio, a origem desse domínio. Mas, como hipótese, não deixa de ser interessante e colocar mais um fator de ‘procura’ e investigação. E agrega, naturalmente, a hipótese subsidiária de as gravuras não serem apenas arte, mas comunicação, ‘texto’ através de desenho, como, acima, propunha, ao referir-me aos hieróglifos egípcios e a outras escritas não alfabéticas.

Aliás, se esta hipótese colher, será de supor que a ‘escrita’ não seja ‘diagráfica’ (sinais que se sucedem), mas ‘singráfica’ (sinais que se sobrepõem).

Avancemos para a interpretação das expressões pré-históricas num registo de ações ‘in’úteis’.

Precisemos que, por ações ‘in’úteis não designamos ações fúteis (enquadráveis na primeira categoria), mas as que superam o critério da utilidade, por excesso. São ‘meta’úteis. Poderemos considerar enquadráveis neste âmbito as que concernem aos domínios do mais especificamente humano (e humanizável): as que respeitam à criação pura, à geração de algo meramente original, domínio a que pertencem a arte, o religioso, os âmbitos do ‘criar por criar’., como, aliás, ocorre com a criação infantil, que faz pelo prazer da realização, da criação. Quanto, aliás, das gravuras pré-históricas poderia ser criação infantil? Hipótese já alguma vez levantada?

Admitir que os elementos identificados se situam neste âmbito do ‘in’útil pressupõe o reconhecimento de um grau de ‘elevação’ para além do chão de que nos fazemos que torna mais difícil, bem certo, compreender as razões que assistem à pureza do ato criativo, mas, ao mesmo tempo, exigem a revisão sobre o grau de ‘civilização’ das comunidades em que as condições existenciais já permitiam ser criador até este grau de ‘pureza’.

Mais do que respostas, estas abordagens são desafio.

Desafio a que, antes de mais, todos (mesmo os que, preconceituosamente, tantas vezes, se (ou foram) arredaram destes territórios) sejam envolvidos na busca da compreensão sobre quem fomos, antes de nos podermos compreender com precisão, mas, também, desafio a que permaneçam em aberto as possibilidades, mesmo as que, num primeiro momento, poderiam parecer-nos excessivas.

O caminho percorrido ainda é curto, mas já tanto se beneficiou com a conjugação de esforços. O repto está lançado. Que muitos o possam aceitar…


[1] Estes e outros nomes poderão ser encontrados no livro de Thomas E. Woods, O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica, Lisboa, Alêtheia Editores, 2009, principalmente páginas 75 a 125. Costumo dizer que este livro deveria estar na secção de finanças, pois é um livro que salda a dívida do Ocidente para com a Igreja Católica, ao reconhecer, contra tantos mal-entendidos, o contributo ímpar do cristianismo católico para a construção da sociedade ocidental.

[2] Sobre o Padre (cónego) Póvoa dos Reis, existe um incontornável ensaio biográfico da autoria de D. Manuel de Almeida Trindade (Bispo de Aveiro entre 1962 e 1988), edição da Gráfica de Coimbra, 2001.

[3] Thierry Aubry, ‘Vale do Côa: Monumentalizar e humanizar com imagens há mais de 12000 anos’, in Revista Super Interessante, ‘Portugal Pré-Histórico: Monumentos e Arte Rupestre no nosso país’, p. 50.

[4] Sara Garcês, ‘O que o rio esconde: Vale do Tejo – o maior complexo de arte rupestre da Península Ibérica’, in Revista Super Interessante, ‘Portugal Pré-Histórico: Monumentos e Arte Rupestre no nosso país’, p. 120.

[5] Cfr. Elena Morán, ‘principais monumentos e expressões artísticas pré-históricas na região do Algarve’ in Ibidem, p. 169s.

 


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de ‘Bem-nascido… Mal-nascido… Do ‘filho perfeito” ao filho humano’, ‘Ensaios de liberdade’ e de ‘Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg’

Imagem: Anta da Cerqueira | Sever do Vouga