Qui. Jan 16th, 2025
As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação

Tiago Azevedo Ramalho

 

[Primeiro texto: aqui.]

-11. Uma questão religiosa? (cont.) As últimas reflexões deixam-nos uma questão em aberto: entre as matérias que merecem uma específica valoração religiosa, qual a fronteira que separa aquelas a respeito das quais não deve haver nenhuma sobreposição do Direito estadual – positiva ou negativamente, prescrevendo ou proscrevendo – daqueloutras em que essa sobreposição de interesses é perfeitamente admissível?

Poderá distinguir-se entre questões exclusivamente religiosas e questões religiosas por sobreposição.

Uma questão é exclusivamente religiosa quando radique única e estritamente na fé religiosa. É realidade cuja existência é apenas pressentível desde o específico horizonte revelado por uma dada via confessional. Considere-se, a título de exemplo, o conjunto de artigos fundamentais de uma profissão de fé (um dogma trinitário, cristológico, pneumatológico, etc.).

Uma questão é religiosa por sobreposição quando a sua realidade possa ser ou não objecto de uma específica interpretação religiosa. O ser humano, o eu e o outro, as coisas do mundo, o meio natural, o universo – tudo realidades que podem gozar de uma certa interpretação «natural», mas a que, existindo a primeira, se pode sobrepor ainda uma interpretação religiosa que com ela se articula.

É evidente que, confrontando esta distinção, a questão do aborto não é exclusivamente religiosa. Com efeito, não se invoca uma fundamentação religiosa para concluir que a criança por nascer pertence já ao mundo biológico dos seres humanos, e que, nessa qualidade, não lhe deve ser amputado o caminho de acesso à socialidade. É antes em nome deste juízo personalizador, fundado num facto biológico, que se toma posição. Ora, as exigências de separação entre Estado e religião não podem impedir que uma dada posição seja sustentada com base em valores comuns, mesmo que, por sobreposição, ao crente haja ainda outas significações implicadas co-determinantes do seu agir – mas esta é questão que apenas a si diz respeito, e que não merece nenhuma ingerência pública, nem prescritiva, nem proscritiva. Para encerrar este ponto, pode dar-se como última «prova» da índole não estritamente religiosa da oposição ao aborto o testemunho de todos aqueles que, estando do lado de fora de uma profissão religiosa, contudo assumem também aquela oposição. Pars pro toto, sirva de exemplo a versão inicial do juramento de Hipócrates… composto naturalmente a.C.: «Não darei substâncias letais, mesmo que alguém mas peça; nem darei tal conselho. Também não darei a uma mulher uma cataplasma abortiva».

De nenhum modo se pode afirmar que é uma exigência de respeito pelo pluralismo de crença que impõe a admissão da legalidade do aborto provocado. Não é. Duas outras são as questões decisivas. A primeira: a quem reconhecemos como um de nós? A segunda: estamos dispostos a tratar como um de nós todos aqueles a quem reconhecemos como um igual? Personalidade universalmente reconhecida, ou não?

 (Continua.)


Imagem de Gerd Altmann por Pixabay