Sáb. Out 12th, 2024
As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação

Tiago Azevedo Ramalho

 

[Primeiro texto: aqui.]

-10. Um novo consenso. (Cont.)Assinala de modo marcado a viragem do pensamento europeu a circunstância de, num tão curto espaço de tempo, uma posição tão contrastante até com a sua própria legislação vigente se ter tornado amplamente hegemónica (cf. os nn.º 4 a 6). Dá-se aqui um muito interessante ponto de confronto com os EUA, cuja dinâmica política tem características diferentes.

Consultando os dados disponibilizados pelo Pew Research Center, vemos que em 1995 – mais de 20 anos após Roe vs. Wade – 38% da população se declarava ainda contra o aborto em todos ou quase todos os casos. E semelhante percentagem manteve-se relativamente estável desde então: em 2024 eram 36%. Mais interessante ainda para compreender a riqueza da diversidade do espaço norte-americano – uma estatística nacional naturalmente que esbate tais diferenças – é o caso de, com dados de um 2014 quase meio século posterior a Roe vs. Wade, num número muito relevante de Estados a posição contrária à liceidade global do aborto ser mesmo maioritária: Alabama (58%), Arkansas (60%), Indiana (51%), Kentucky (57%), Louisiana (57%), Mississippi (59%), North Dakota (51%), South Dakota (52%), Tennessee (55%), Utah (51%) e West Virginia (58%). São dados que ajudam a compreender até que ponto Roe vs. Wade comprimira o espaço para a deliberação democrática, apenas restaurada com Dobbs vs. Jackson (nn.º 7 e 8). Ao contrário do que entre nós se verifica, em que, cerca de vinte e cinco anos depois do primeiro referendo à despenalização do aborto (1998), em que o não ultrapassou os 50%, e pouco mais de quinze do segundo (2007), em que ultrapassou 40%, tal posição praticamente se esfumou do espaço público, a realidade norte-americana testemunha uma extraordinária capacidade de conservar animadas forças de transformação política mesmo contra regimes jurídicos que se apresentam com a pretensão de irreversibilidade. Sinal de uma consciência bem viva da possibilidade, e da realidade, de uma sociedade civil não absorvida, na sua prática e no seu imaginário, pela batuta estadual; traços de uma Democracia na América que continua a oferecer notáveis inspirações. O contraste com grande parte da apassivada Europa, continente que entretanto se tornou, à escala mundial, uma espécie de bastião da simpatia para com o aborto provocado, não podia ser maior.

(Continua.)


Imagem de OpenClipart-Vectors por Pixabay