Sáb. Out 12th, 2024
Pedro Ferreira*

Não vi em direto a cerimónia de abertura dos jogos olímpicos de Paris. Dizem que foi um espetáculo interessante, estruturalmente diferente e polémico.

E a polémica vem de onde? Parece que uns bispos (uns velhos que teimam em dirigir uma instituição ultrapassada) vieram dizer que um dos momentos do espetáculo parodiava, de forma ofensiva, um dos mistérios mais sagrados para os cristãos (uma gente que havia antigamente): a instituição do sacramento da Eucaristia.

E começaram as questões, as opiniões, as discussões e os comentários.

Para mim, a mais curiosa das discussões é se há direito ou não, da parte dos cristãos, a sentirem-se incomodados. Parece que “o direito a sentir” é objeto de decisão alheia.

Lembrou-me o caso daquele selecionador espanhol que, no momento de comemorar uma grande vitória futebolística, beijou uma jogadora sem que, alegadamente, esta tivesse consentido. O resultado foram semanas de discussões e comentários sobre o direito ou o dever da alegada vítima a sentir-se ofendida. Neste caso, a opinião que manda deliberou que a senhora tinha a obrigação de se sentir incomodada, e, semanas mais tarde, a senhora assentiu em apresentar queixa. Ai dela que o não fizesse! Se decidisse desvalorizar o ocorrido, na voz de quem decide o que se deve sentir, de vítima inocente a galdéria sem vergonha passaria num ápice. Não sei se o assédio físico perpetrado pelo selecionador terá sido mais ou menos violento do que o assédio moral que seguiu com políticos, comentadores e analistas a imporem uma decisão que só à consciência da jogadora competia.

Mas voltemos aos jogos olímpicos. Aqui, ainda não sei bem o que decidirá quem manda. Parece que estão inclinados para desvalorizar o sucedido, até porque falamos de França, país campeão olímpico da laicidade. Em França, o fenómeno religioso é um não-assunto… exceto quando se torna assunto pelas piores razões. A França lida muito mal com as religiões, e tem pago isso a preço de sangue.

Mas vejamos o assunto noutra perspetiva: se, na lógica da sacrossanta laicidade francesa, o religioso deve estar bem fechadinho na intimidade da casa ou do templo de cada um, como aparece, de repente, uma recriação de uma cena religiosa numa cerimónia tão pública? Será que a laicidade, que obriga quem tem fé a recolhê-la na sua intimidade, não obriga ao mesmo recato quem a não tem?

Parece-me que os senhores que mandam nos sentimentos andam distraídos. Mesmo decretando a proibição de sentimento de ofensa para os cristãos, falham ao não decretar a ofensa para todos os defensores da laicidade, sujeitos que foram à violência de verem passar pelos seus olhinhos a recriação de uma cena bíblica.

Em nome da empatia (sentimento que me fica bem como cristão), manifesto aqui a minha solidariedade com todos os defensores da laicidade que tiveram o azar de assistir à cerimónia de abertura dos jogos olímpicos.

De facto, a utilização, mesmo que sacrílega, de simbologia cristã afirmou, perante o mundo, aquilo que tanto se quer negar: a marca que o cristianismo imprimiu na história da humanidade e, em particular, na da França, e a presença que mantém na vida de milhões de pessoas, na França e em todo mundo.


*Professor e secretário da Comissão Diocesana da Cultura | Aveiro


Imagem de Pexels por Pixabay