Sáb. Out 12th, 2024
Texto originalmente publicado na Agência Ecclesia

Luís Manuel Pereira da Silva*

A história da relação entre o cristianismo e o jogo não será das mais positivas entre as que dois mil anos de muitos encontros e desencontros poderão contar.

O risco de a homenagem aos vencedores poder resvalar para um qualquer indisfarçável culto do corpo e a marca veterotestamentária de uma vincada recusa do culto idolátrico poderão ter contribuído, de forma profunda, para essa desconfiança.

Por contraste, contudo, poderiam ter-se encontrado, de modo semelhante, iguais motivos de desconfiança para com a comensalidade, mas tal não impediu que o banquete tenha sido, ao longo da história da salvação, uma das mais frequentes metáforas da relação entre Deus e a humanidade; ou para com o lugar do tálamo, desvirtuado, tantas vezes, por infidelidades e violências, sem que tal tenha obstruído a que Cristo pensasse a sua relação com a Igreja como a de um Esposo com a sua Esposa.

Não mereceu igual ‘oportunidade’ o jogo, porém. Uma rápida procura pelos textos bíblicos permitir-nos-á verificar que é palavra ausente da terminologia sagrada. ‘Jogar’ parece não fazer parte da relação entre Deus e o homem. Talvez disso já se tivesse apercebido o judeu (de nascimento) Einstein, ao reconhecer que ‘Deus não joga aos dados’. (Não era a isto que se referia, bem certo, mas à natureza ‘determinística’ e não aleatória da realidade, mas não deixa de ser interessante recordá-lo, nesta circunstância!)

Mas não será de se dar ‘nova oportunidade’ ao jogo?

O fundador do escutismo, Baden-Powell, percebeu-o, no já distante 1907, ao conferir ao jogo uma condição central na pedagogia do movimento por si fundado nessa altura.

Diz a história da recuperação dos jogos olímpicos que o próprio Pierre de Coubertin, que estudou num colégio jesuíta, se inspirou num livro escrito pelo padre dominicano e pedagogo Thomas Arnold para a criação dos jogos olímpicos da era moderna. Percebera o papel do desporto no desenvolvimento da pessoa e na sua integração na vida em sociedade e na compreensão de si mesma. 1500 anos depois, seria pela via da influência cristã que se recuperaria uma longa omissão da história (é preciso, bem certo, compreender a conotação que os jogos olímpicos tinham quando Teodósio os extinguiu, no século IV, sendo associados ao paganismo e ao culto idolátrico e politeísta. As circunstâncias político-sociais ajudam a compreender a determinação em pôr fim ao que simbolizava um passado de que se pretendia partir…).

Constatada, então, a utilidade e nunca suficiente tarefa de recuperar-se dessa história de desconfiança, ousemos fazemos uma ‘ludologia’, uma abordagem do jogo a partir da natureza que dele pode colher-se para a compreensão do humano mais profundo.

A procura do que define o humano e do que o distingue dos demais seres, em particular, dos animais, está, hoje, envolvida em enormes ambiguidades.

Recordo, porém, sempre, quando esta é a matéria em discussão, a constatação de Chesterton: ‘Aquilo que tem de ser explicado não é a semelhança, é a monstruosa escala da dissemelhança. Que o homem é parecido com os animais é, em certo sentido, um truísmo; mas que, sendo tão parecidos, eles sejam tão inconcebivelmente diferentes, isso é que é um choque e um enigma’. (Ortodoxia, Alêtheia, 2008, p. 205)

E, na minha perspetiva, se tivermos de procurar o que, de facto, nos distingue, teremos de o encontrar no que há de comum à sua capacidade de criar linguagem, de partir em busca do eterno, de ousar perdoar, de chorar diante de uma foto ou, simplesmente, de um nome, de criar um ritual e de o repetir, sucessivamente, com significado e comoção.

Entre todas estas ações, há algo em comum: a capacidade de ‘representar’ o ausente. A essa capacidade, que consiste em unir duas partes – uma ausente que se torna presente em algo distinto -, damos o nome de ‘simbologia’ ou, melhor, ao ‘algo’ que torna presente uma realidade ausente chamamos ‘símbolo’. Devemos esta palavra ao grego que, com o verbo ‘simballein’ (sün+ballein), quer dizer ‘lançar junto, em conjunto’, expressando a ideia de unir duas partes que estavam separadas. Curiosamente, o oposto é o verbo ‘dia+ballein’ (que exprime a ideia contrária de ‘atirar em separado’, ‘cindir o que está unido’ (‘quebrar o que está junto’), que deu, em português, o termo ‘diabo’.

Ora, o jogo é, pela sua natureza, uma representação. Torna presente uma realidade ausente. Representa a violência, através de ‘rituais’ que não são violência em si mesmos.

Recordo bem as palavras de um nosso selecionador, Luís Felipe Scolari, quando, no emotivo ‘Euro 2004’, se referia às fases de eliminatórias como sendo de ‘mata-mata’.

No futebol, pode dizer-se que há ‘mata-mata’, pois a ‘morte’ do adversário é puramente simbólica, isto é, está presente mas ausente; ou, melhor, está ausente mas presente, simbolicamente, apenas. O golo que derrota o adversário é ‘como’ lança cravada no seu peito. Mas não lhe é letal. No final, podemos abraçar-nos e ‘beber um copo juntos’.

É esse o poder do símbolo.

É esse o poder do jogo, enquanto realidade criada, única e singularmente, pelos seres humanos.

E é por isso, também, que, quando a violência deixa de ser simbólica e passa a real, o jogo deixa de o ser. (Aliás, confesso que sou um defensor de que não têm natureza de jogo aquelas modalidades em que o objetivo é deixar KO o adversário. A realidade representada deixa de ser re-presentada para passar a ser real. O símbolo extingue-se pela confusão entre o representante e o representado…)

Entusiasmados com estes rudimentos de ludologia, poderíamos arriscar pedir aos homens do poder que sonhem o mundo como um grande jogo e procurem resolver, num real tabuleiro de xadrez, os problemas de território ou de domínio. Se, afinal, ganhar uma guerra é uma questão de estratégia, melhor será o político que mantiver protegido o seu rei do xeque-mate adversário! E com muito menos custos de vidas humanas. Os peões tombados, que ladeiam o tabuleiro, podem voltar a erguer-se para novo jogo, em sucessivas batalhas e xeques-mates.

Não poderá erguer-se, porém, do campo real de batalha, cada soldado tombado e chorado. Porque a guerra não é um jogo!


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de ‘Bem-nascido… Mal-nascido… Do ‘filho perfeito” ao filho humano’, ‘Ensaios de liberdade’ e de ‘Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg’

Imagem de PayPal.me/FelixMittermeier por Pixabay