Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura
Luís Manuel Pereira da Silva*
O autor e a obra
Michael J. Sandel, O que o dinheiro não pode comprar: os limites morais dos mercados, Barcarena, Editorial Presença, 2015.
Michael Sandel é professor de filosofia na Universidade de Harvard, e convidado na Universidade de Sorbonne, Paris. Tem a maioria dos seus livros traduzidos em Portugal editados pela Presença. Uma aposta certeira, evidente no facto de que, apesar de se tratar de livros de filosofia, rapidamente são reeditados. Em Portugal, estão traduzidos os seus ‘O Liberalismo e os Limites da Justiça’, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian, e, pela Presença, ‘Justiça – Fazemos o que Devemos?’, cuja base é, em grande parte, o seu muito procurado curso sobre Justiça, ‘A Tirania do Mérito – O que aconteceu ao bem comum?’ e, mais recentemente, o seu ‘O Descontentamento da Democracia – Por que razão vivemos tempos perigosos e o que temos de fazer para mudar’.
Quando se lê Sandel, rapidamente se percebe a causa do seu sucesso. O seu pensamento é claro, partindo de perguntas que adivinham as inquietações do leitor, expresso numa escrita que parece ser um diálogo com o distante leitor, como se o levasse pela mão até à solução que nos propõe.
Mesmo quando nos apresenta uma solução com que podemos não concordar, como a que formula no seu livro ‘a tirania do mérito’, em que sugere que o sorteio pudesse ser uma solução para evitar a meritocracia que exclui, a sua argumentação é poderosa e envolvente, deixando no leitor honesto a sensação de um profundo respeito, dada a clareza da exposição.
Um pensador a ler e acompanhar…
Marcas de água (o que fica depois de se deixar o livro)
Para quem me lê, deixo, antes da descrição sobre o que fica da leitura deste livro, uma nota muito ilustrativa do interesse que suscita este livro. Comecei a lê-lo em 24 de setembro de 2016. Acabei de o ler a 2 de outubro, entre os inúmeros afazeres, próprios de qualquer início de ano letivo. A fluidez do pensamento, a transparência da escrita prendera-me. O entusiasmo que me suscitou fez-me comprar, logo após terminar esta leitura, o seu ‘Justiça’, que também li num fôlego.
Sandel é, não só claro, como defensor de uma linha de pensamento com que, como personalista cristão, me identifico. O centro do pensamento de Sandel é claro: há valores que não são redutíveis à lógica da compra e venda. Como que poderíamos sintetizar que, apesar de o dinheiro tudo querer comprar, nem tudo pode ser vendido. Como o próprio Sandel afirma, ‘quando decidimos que determinados bens podem ser comprados e vendidos, estamos a decidir, pelo menos de forma implícita, que é apropriado tratá-los como mercadorias, como instrumentos de lucro e uso. Mas nem todos os bens são devidamente valorizados desta forma. O exemplo mais óbvio são os seres humanos.’ (p. 19)
A centralidade que coloca na pessoa humana, repercutindo uma matriz com grandes pontos de coincidência com a leitura cristã (ainda que o autor não o explicite, mas sem deixar, porém, de citar, quando necessário, o próprio Magistério pontifício), leva-o a interrogar sobre se ‘queremos uma ‘economia de mercado ou uma sociedade de mercado’ (p. 20), ideia que a nós, portugueses, invoca uma outra interrogação formulada por D. José Policarpo sobre a laicidade do Estado em que recordava que, sendo certo que o Estado é laico (ainda que a Constituição da República nunca utilize este termo), a sociedade não o era. Agora, a questão é entre a economia e o todo da sociedade. E Sandel deixa clara a sua linha. A lógica de mercado deve confinar-se ao que é mundo específico da economia, não deixando que tudo se reduza a lógica de compra e venda.
O filósofo de Harvard defende, por isso, que é preciso assumir a consciência de que todas as ações humanas são suscetíveis de apreciação moral (não há amoralidade prática), o que o leva a concluir que, dada a relevância da política na vida em comum, há que constatar que ‘o problema da política não reside no excesso mas sim na carência de argumentação moral. A nossa política é inflamada porque é essencialmente vaga, vazia de conteúdo moral e espiritual. Não abarca as grandes questões que preocupam as pessoas.’ (p. 23)
Com estes pressupostos, Sandel constrói uma narrativa construída com uma articulação densa e fluentemente conduzida de argumentos e factos que conduzem o leitor ao reconhecimento de que nem tudo é redutível à lógica da compra e venda. Num tempo em que tudo é reduzido à ordem do útil, o discurso de Sandel está em contracorrente, ousando dizer-nos que há valores que estão para além do tangível. ‘[…] assim que vemos como os mercados e o comércio alteram o caráter dos bens em que tocam, temos de perguntar a que esferas os mercados pertencem – e não pertencem. E não podemos responder a esta pergunta sem deliberarmos sobre o significado e o propósito dos bens e os valores que deveriam regê-los.’ (p. 209)
Num tempo tão propenso a ‘cancelamentos’ e silenciamentos, Sandel não tem medo de afirmar que ‘por receio de suscitarmos discórdia, hesitamos em expor as nossas convicções morais e espirituais na praça pública. Mas o facto de nos esquivarmos a estas questões não as faz deixar por decidir. Significa apenas que os mercados as decidirão por nós.’ (p. 209)
A pergunta com que termina é revisitável, no contexto português: ‘queremos uma sociedade onde tudo está à venda? Ou existirão determinados bens morais e cívicos que os mercados não honram nem respeitam e que o dinheiro não pode comprar?’ (p. 210)
Pergunto eu, sem comprometer Sandel: estão à venda os valores fundamentais, dependentes de quem, com poder económico, pode manipular os média e ‘vendê-los bem vendidos’ ou podemos contar com decisores políticos que protegem os valores fundamentais, mesmo quando isso pode custar no mercado eleitoral?
Temas como a proteção da família, da vida humana nos seus extremos, a liberdade religiosa, a proteção do direito da família à liberdade de educação estão em risco no mercado dos valores eleitorais. Sucumbirão ao peso dos diversos ‘mercado’? Ou permanecerão valores (algo que consideramos valer e merecer proteção) distinguindo-se o que vale do que não vale?
Na mesma página que o autor (citações)
‘Hoje, a lógica da compra e venda já não se aplica apenas a bens materiais, mas domina cada vez mais todos os aspetos da vida. Está na altura de perguntarmos se queremos viver desta forma.’ (p. 16)
‘Precisamos de nos perguntar se há algumas coisas que o dinheiro não deve comprar.’ (p. 17)
‘Numa sociedade em que tudo está à venda, a vida é mais difícil para aqueles que têm escassos recursos. Quantas mais forem as coisas que o dinheiro pode comprar, maior importância adquire a riqueza (ou a falta dela). (p. 18)
‘Pagar a crianças para lerem livros pode incentivá-las a ler mais, mas também as ensina a encarar a leitura como uma tarefa e não uma fonte de satisfação intrínseca.’ (p. 19)
‘Os economistas partem muitas vezes do pressuposto de que os mercados são inertes, que não afetam os bens que são transacionados. Mas isso não é verdade. Os mercados deixam a sua marca. Às vezes, os valores de mercado excluem os valores não mercantis que merecem ser protegidos.’ (p. 19)
‘[…] quando decidimos que determinados bens podem ser comprados e vendidos, estamos a decidir, pelo menos de forma implícita, que é apropriado tratá-los como mercadorias, como instrumentos de lucro e uso. Mas nem todos os bens são devidamente valorizados desta forma. O exemplo mais óbvio são os seres humanos. A escravidão era chocante porque tratava os seres humanos como mercadorias que podiam ser compradas e vendidas em leilão. Um tal tratamento não valoriza devidamente os seres humanos – como pessoas merecedoras de dignidade e respeito e não como instrumentos de obtenção de lucro e objetos de uso.’ (p. 19)
‘[…] uma economia de mercado é uma ferramenta – uma ferramenta valiosa e eficaz – para organizar a atividade produtiva. Uma sociedade de mercado é uma forma de vida em que os valores de mercado se infiltram em todos os aspetos da atividade humana. É um lugar onde as relações sociais são moldadas à imagem do mercado. […] Queremos uma economia de mercado ou uma sociedade de mercado?’ (p. 20)
‘O problema da política não reside no excesso, mas sim na carência de argumentação moral. A nossa política é inflamada porque é essencialmente vaga, vazia de conteúdo moral e espiritual. Não abarca as grandes questões que preocupam as pessoas.’ (p. 23)
‘À sua própria maneira, a lógica racional do mercado também esvazia a vida pública de argumentação moral. Parte do apelo dos mercados reside no facto de não fazerem juízos de valor sobre as preferências que satisfazem. Não perguntam se algumas formas de valorizar os bens são mais nobres, ou mais dignas, do que outras. Se alguém está disposto a pagar por sexo ou por um rim, e uma pessoa maior e vacinada estiver disposta a vender esse bem ou serviço, a única pergunta que o economista faz é: «Quanto é?» Os mercados não apontam um dedo reprovador. Não discriminam entre preferências admiráveis e abjetas. Cada uma das partes envolvidas no acordo decide por si mesma o valor a atribuir à coisas que estão a ser transacionadas.’ (p. 23)
‘Se concordamos que comprar e vender certos bens os corrompe ou degrada, então acreditamos que algumas formas de valorizar esses bens são mais apropriadas do que outras. Dificilmente faz sentido falar sobre corromper uma atividade – a paternidade, por exemplo, ou a cidadania – a menos que pensemos que determinadas maneiras de se ser pai, ou cidadão, são melhores do que outras.
Juízos morais deste teor subjazem às poucas limitações impostas aos mercados que ainda podemos observar. Não permitimos que os pais vendam os filhos ou que os cidadãos vendam os seus votos. E uma das razões para não o permitirmos é, francamente, de ordem moral: acreditamos que vender essas coisas as valoriza da forma errada e promove más atitudes.’ (p. 24)
‘Muitas vezes associamos a corrupção a lucros obtidos de forma ilícita. Mas a corrupção refere-se a algo mais do que subornos e pagamentos ilícitos. Corromper um bem ou uma prática social é degradá-lo, trata-lo de acordo com uma modalidade de valorização menor do que aquela que seria apropriada.’ (p. 43)
‘[…] de modo a determinarmos se a capacidade reprodutiva de uma mulher deveria ser objeto de uma transação mercantil, temos de perguntar que tipo de bem é esse: deveríamos considerar o nosso corpo como bem que possuímos e podemos usar e disponibilizar como melhor entendermos ou será que alguns usos do nosso corpo equivalem a um ato de autodegradação? Trata-se de uma questão importante e controversa que também surge nos debates sobre a prostituição, as barrigas de aluguer e a compra e venda de óvulos e esperma. Antes de podermos decidir se as relações de mercado são apropriadas para tais domínios da vida, precisamos de compreender que normas deveriam reger as nossas vidas sexuais e reprodutivas.’ (p. 55)
‘Poderá toda a ação humana ser entendida à imagem de um mercado? Economistas, politólogos, juristas e outros profissionais continuam a debater esta questão. Mas o mais surpreendente é a forma como esta imagem se tornou poderosa – não só nos meios académicos, mas também na vida quotidiana. Nas últimas décadas, assistiu-se à transformação das relações sociais à imagem das relações de mercado, num grau verdadeiramente notável. Um dos traços desta transformação é o uso crescente de incentivos monetários para resolver problemas sociais.’ (p. 59)
‘Muitas vezes, os incentivos de mercado corroem ou excluem os incentivos não mercantis.
Um estudo centrado em alguns infantários em Israel demonstra como isto pode acontecer. Os infantários enfrentavam um problema muito comum: às vezes, os pais chegavam tarde para recolherem os filhos. Uma das educadoras tinha de ficar com as crianças até à chegada dos pais retardatários. Para resolver esse problema, os infantários começaram a aplicar uma multa aos pais atrasados. O que acha o leitor que aconteceu? Na verdade, os atrasos na recolha das crianças aumentaram.
Ora, caso se assuma que as pessoas respondem a incentivos, esse é um resultado desconcertante. Esperar-se-ia que as multas reduzissem, e não que aumentassem, a incidência de ressolhas com atraso. O que aconteceu então? A introdução de um pagamento em dinheiro mudou as normas. Antes dessa medida, os pais que chegavam atrasados sentiam-se culpados, pois estavam a sujeitar as educadoras a uma situação incómoda. Mas, após a introdução das multas, os pais passaram a considerar as recolhas atrasadas das crianças um serviço pelo qual estavam dispostos a pagar. Encaravam a multa como se fosse uma taxa. Em vez de abusarem da boa vontade das educadoras, estavam simplesmente a pagar-lhes para trabalharem por mais tempo.’ (pp. 72-73)
‘O que faz com que as multas por excesso de velocidade na Finlândia não possam ser tratadas como taxas não é apenas do facto de variarem de acordo com os rendimentos do infrator. É também o opróbrio moral que lhes subjaz: o juízo moral de que infringir o limite de velocidade é um comportamento errado.’ (p. 74)
‘À medida que os mercados invadem esferas da vida tradicionalmente regidas por normas não mercantis, a noção de que os mercados não tocam nem maculam os bens que transacionam torna-se cada vez mais implausível. Um crescente número de investigações confirma aquilo que o senso comum sugere: os incentivos financeiros e outros mecanismos de mercado podem ter consequências negativas ao excluírem normas não mercantis. Às vezes, oferecer um pagamento para se obter um determinado comportamento pode resultar numa manifestação menos, e não maior, desse comportamento.’ (pp. 119-120)
‘[…] encarar as normas morais e cívicas apenas como formas economicamente rentáveis de motivar as pessoas equivale a ignorar o valor intrínseco dessas normas.’ (p. 125)
‘O altruísmo, a generosidade, a solidariedade e o espírito cívico não são similares a mercadorias que se esgotam com o uso. São mais como músculos que se desenvolver e fortalecem com o exercício. Um dos defeitos de uma sociedade regida pelos mercados é que permite que estas virtudes definem. Para podermos renovar a nossa vida pública, precisamos de as exercer com uma tenacidade cada vez maior.’ (p. 135)
‘[…] para se poder decidir a que esferas da vida a publicidade pertence ou não, não basta debater os direitos de propriedade, por um lado, e a questão da justiça, por outro. Também precisamos de discutir o significado das práticas e dos bens sociais que encarnam. E precisamos de perguntar, em cada caso, se a comercialização dessa prática acabaria por a degradar.’ (p. 195)
‘A publicidade incentiva as pessoas a quererem coisas e a satisfazerem os seus desejos. A educação incentiva as pessoas a refletirem de forma crítica sobre os seus desejos, para os refrear ou sublimar. O propósito da publicidade consiste em recrutar consumidores; a finalidade das escolas públicas consiste em cultivar os cidadãos.’ (p. 207)
‘Queremos uma sociedade onde tudo está à venda? Ou existirão determinados bens morais e cívicos que os mercados não honram nem respeitam e que o dinheiro não pode comprar?’ (p. 210)