Seg. Mar 17th, 2025
As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação

Tiago Azevedo Ramalho

 

[Primeiro texto: aqui.]

– 7. Cont. É próprio da polarização política implicar a violenta redução da complexidade do mundo a um grosseiro único ponto focal. Os resultados são sabidos: não raro aquele que, de modo voluntarioso, aceita recobrir-se sob uma dada bandeira vê-se surpreendido por quem consigo partilha a respetiva sombra.

Veja-se, com efeito, até que ponto Roe vs. Wade se coloca nos antípodas daquela que fora a solução corrente em âmbito europeu. O seu ponto de partida não é sequer a «ponderação de interesses», mas a clara prevalência da liberdade individual. De onde resulta a total exclusão de que o aborto possa ser afastado na fase introdutória da gravidez, subtraindo uma tal possibilidade de decisão ao legislador de cada Estado; e, ponto ainda mais impressivo, sem se julgar contrário à constituição norte-americana que o aborto provocado possa ter lugar até ao fim da gravidez (como é permitido presentemente em dez Estados – Alaska, Colorado, Maryland, Michigan, Minnesota, New Jersey, New Mexico, New York, Oregon, Vermont –, além do District of Colombia),

Como foi possível chegar a um semelhante resultado?

Por um lado, mediante uma assinalável exaltação da liberdade individual. Para o efeito, extraiu o Supreme Court da Constituição norte-americana um não escrito right of privacy que abrange a decisão de interromper a gravidez. Este direito (…) «é suficientemente amplo para abranger a decisão da mulher de terminar ou não a sua gravidez. É evidente o prejuízo que o Estado imporia à mulher grávida ao negar-lhe de todo esta escolha (…) A maternidade, ou uma maior descendência, pode forçar a mulher a uma vida e a um futuro preocupantes. Encontra-se iminente o dano psicológico. A saúde mental e física pode ser muito onerada pelo cuidado de crianças. Existe igualmente a preocupação, para todos os envolvidos, ligada a uma criança mais desejada, e há o problema de trazer uma criança para uma família que já está incapaz, psicológica e de outras maneiras, de dela cuidar. Noutros casos, (…) podem estar envolvidas dificuldades adicionais e uma estigmatização contínua de uma maternidade fora do casamento.»

Por outro lado, mediante a negação de um estatuto pessoal ao embrião: «Não temos de resolver a difícil questão de quando a vida começa. Quando os formados nas respectivas de Medicina, Filosofia e Teologia são incapazes de chegar a qualquer consenso, o poder judicial, neste ponto de desenvolvimento do conhecimento humano, não está em posição de especular sobre a resposta. Deverá bastar notar brevemente a vasta divergência de pensamento nesta questão tão sensível e difícil. Houve sempre um apoio muito forte da posição de que a vida não começa senão com o nascimento com vida.»

Eis a lógica argumentativa do tribunal: porque sempre houve divergências a respeito de quando começa a vida humana, então não parece ser legítimo que ela limite a liberdade individual. Salvo muito, consente-se que a liberdade da mulher possa restringir-se, no último terço da gravidez, em nome da protecção da «vida humana potencial». Aliás, afirma mesmo expressamente que, acaso o feto se considerasse uma pessoa, toda a argumentação pró-aborto colapsaria: «Se se concluir por esta sugestão de [existência de] personalidade, então todo o caso do apelante, claro, colapsa, uma vez que o direito do feto à vida estaria então especificamente garantido (…).»

(Continua.)


Imagem de Amy por Pixabay