Artigo originalmente publicado no número de junho de 2024 do boletim do Arciprestado de Seia – Gouveia, ‘O Alforge’
Luís Manuel Pereira da Silva*
A nossa condição de seres racionais faz-nos altamente dependentes dos conceitos que moram na nossa mente. Do conceito que temos resulta um certo modo de vivermos a realidade de que eles falam.
Deste modo, o conceito de felicidade que habitar a nossa mente condicionará a nossa forma de nos pensarmos felizes (ou infelizes), o conceito do outro condicionará o nosso modo de nos abeirarmos dele, o conceito que tivermos de Deus, etc… Assim também em relação à liberdade.
Do conceito de liberdade que tivermos resulta uma certa forma de a vivermos e uma certa forma de nos pensarmos como livres ou não livres.
Com este pressuposto, importa, então, limar os conceitos, para que não aconteça que de quimeras que construímos na nossa mente redundem aventuras votadas à desilusão, pois nada há de mais perigoso do que uma enorme ilusão: o resultado é, certamente, a desilusão.
Pela centralidade que ocupa nas nossas sociedades modernas (aliás, muitos definem a modernidade como a afirmação da autonomia – mais um termo cujo conceito é necessário precisar, para que não se torne fonte de desilusões!), o conceito de liberdade deve ser analisado, vez após vez, para que não se transforme num ‘fantasma’ responsável pela destruição da própria sociedade.
Neste registo, ouso desafiar à constatação de que o conceito de liberdade em que muitos discursos se vêm estruturando mostra enfermar de quatro traços que podem conduzir a uma ideia de liberdade que favoreça a sua própria destruição.
Enuncio esses quatro traços: a liberdade tem sido definida num registo voluntarista, solipsista (individualista) e incondicionado.
Analisemos cada um destes traços em busca de uma definição que faça da liberdade autêntica fonte de libertação.
A liberdade é ato da vontade?
Uma leitura atenta do conceito de liberdade terá de, rapidamente, concluir que o conceito é específico da humanidade e só por comparação poderá atribuir-se a outros seres criados. Por este facto (de ser especificamente humano), deverá procurar-se no ser humano aquilo que o distingue e que fará da liberdade uma condição que só nos humanos poder encontrar-se. Prontamente nos teremos de encaminhar para o facto de o ser humano olhar o mundo como quem o lê. O ser humano interpreta, pensa a realidade. Ora, a liberdade deverá, por isso, participar desta forma de aceder ao mundo. Ser livre não terá, por isso, de ser definido como a possibilidade de querer (tornando-a um ato da vontade, que também os não humanos possuem), mas sim como a capacidade de ler, de iluminar a vontade e o que se sente (os afetos) com o contributo da inteligência. Ser livre é, assim, escolher, discernir, mobilizar a vontade e os afetos à luz da inteligência. A liberdade terá de concluir-se ser um ato da inteligência e não um ato da vontade. Costumo ilustrar com a experiência do toxicodependente que tudo faz seguindo o desejo, o que a vontade lhe pede. Chega ao ponto de, se a vontade lho pedir, matar para obter o que ela quer. Mas poderemos definir estes atos como sendo livres? Falta-lhes serem iluminados pela inteligência e consequentes com essa iluminação. O ato livre é o que resulta dessa iluminação e dessa mobilização dos afetos e da vontade seguindo essa iluminação.
Curiosamente, porém, as definições que pululam de liberdade fazem-na confinar-se à vontade, o que se expressa de forma mais cabal na afirmação de que ‘ser livre é fazer-se o que se quer’.
Não foi esta a visão sobre a liberdade que nos ofereceu a história do pensamento e da filosofia (que sempre a identificou como determinação da vontade e do afeto à luz da razão), mas, por influência nominalista e, mais recentemente, nietzscheana e schopenhaueriana, fomos afunilando a liberdade para o âmbito da vontade, com custos que a nossa reflexão nos ajudará a identificar.
O primeiro grande custo é o que resulta de uma característica da vontade: a vontade tudo quer; é indeterminada, móvel, volúvel; o seu objeto é o que lhe aponta o desejo… As vontades sobrepõem-se, opõem-se, estorvam-se, enquanto as inteligências se encontram, apontam para um horizonte comum – a verdade – e caminham juntas, podendo auxiliar-se umas às outras na busca do horizonte comum.
A liberdade é um ‘fechar-se’ ou um ‘abrir-se’ ao outro?
Fácil é constatar que, se a liberdade é ato da vontade, com estas características apontadas, então, os sujeitos que se pretendem livres são seres fechados sobre si, excluindo os outros, pois são portadores de vontades que se anulam.
É o drama do liberalismo que padece deste conceito voluntarista de liberdade. Como definia Herbert Spencer, se a liberdade é assim pensável, então, ‘a minha liberdade acaba onde começa a liberdade do outro’.
Mas não penso que este conceito de liberdade corresponda ao que somos, como humanos.
Em primeiro lugar, porque não podemos ser só uma parte de nós (a vontade) e, em segundo lugar, porque não é verdade que o que somos possa prescindir dos outros.
Pelo contrário, esta visão solipsista e individualista da liberdade (defendida pelos liberalismos) trai o reconhecimento de que nascemos de outros (nascemos de dois; não de um só… Somos seres que logo na sua origem dependem da relação e não da solidão…) e de que a consciência que temos de nós mesmos precisou de outros humanos para poder emergir.
Isso o demonstra a história dos meninos selvagens que, se abandonados na selva, por volta dos três anos, conseguiram sobreviver, mas nunca desenvolver consciência de si mesmos. São os outros (os nossos pais, os nossos cuidadores, os que nos rodeiam….) quem faz emergir a consciência de nós que está em potência, em nós, mas que, sem os outros, jamais emergirá.
Sendo assim, o solipsismo é uma traição à condição humana. Somos, contrariamente a esse solipsismo, liberdades que precisam das demais liberdades para serem livres. Por isso, há que superar o pensamento de Herbert Spencer com a convicção alternativa de que uma autêntica liberdade é a ação ou determinação pela qual as outras liberdades também podem desenvolver-se; a minha liberdade não acaba onde começa a do outro, mas sim, a minha liberdade precisa da do outro para realmente ser, existir e poder acontecer.
Liberdade humana ou inumana?
Superados o voluntarismo e o solipsismo, cabe constatar que é preciso ultrapassar, também, o ‘incondicionalismo’ de certas conceções de liberdade que pressupõem a possibilidade de uma liberdade não condicionada, completamente indeterminada. É a lógica dos movimentos de autodeterminação de género que pressupõem um sujeito sem qualquer ‘história’, sem qualquer condicionamento prévio. Um sujeito assim não é humano; poderia ser divino, mas não humano. Nenhum ser humano está fora de condições concretas. Toda a liberdade humana é condicionada: pela língua, pela cultura, pela condição biológica, pelas circunstâncias várias, diante das quais se constrói como ser capaz de transcender essas circunstâncias, mas sem as apagar. Tendo-as como pressupostos.
O nosso acesso ao mundo é sempre condicionado pela cultura em que nos fazemos, pela língua com que acedemos ao mundo, pelas relações que construímos.
Pressupor um sujeito humano sem estes condicionamentos é referir-se a alguém que não existe.
E percebem-se as consequências nefastas dessa ilusão de um sujeito completamente indeterminado.
Como seria se alguém decidisse prescindir de uma qualquer língua para comunicar?
Teria de instruir os demais na sua própria língua, pois ela tornar-se-ia ineficaz, na medida em que não comunicaria coisa nenhuma, por só ser compreensível pelo seu criador…
Uma autodeterminação absoluta isola numa mónada fechada cada sujeito humano, coisa absurda e inumana (ou, mesmo, desumana). Somos, intrinsecamente, seres relacionais.
E esses são os dois conceitos de liberdade em jogo: um de tipo individualista, fechado, solipsista, perante um de tipo personalista, em que todos somos pessoas, seres essencialmente definidos como seres de e para a relação.
Um humano é um ser feito do ‘húmus’, por isso, frágil, vulnerável, um indigente do outro, do ‘fora de si’, um ser aberto.
Curiosamente, poderia constatar-se que os dois conceitos de liberdade aqui em jogo evidenciam a tentação de Adão: fechar-se em si mesmo, ser autossuficiente, bastar-se a si mesmo ou reconhecer-se como ser aberto ao outro, ao mundo, ao Outro.
Estamos, vez após vez, a ser expulsos do paraíso…