Ter. Fev 18th, 2025
As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação

Tiago Azevedo Ramalho

 

[Primeiro texto: aqui.]

– 5. Cont.  – Aventurou-se o Tribunal Constitucional Federal alemão num equilibrismo difícil de manter: sustentar, em simultâneo, a ilicitude do aborto provocado, sem, porém, convocar necessariamente para lhe responder os vigorosos instrumentos do Direito Penal, quer dizer, a previsão daquela prática como crime – e, na realidade, tolerando até que, dentro desse círculo de não punibilidade, o aborto possa ser realizado. Sem prejuízo, há, pelo menos, a séria tentativa de distinguir despenalização e legalização, negando-as enquanto pretensos verso e reverso de um mesmo fenómeno, prevenindo que a despenalização seja aqui tida por uma legalização (entendida enquanto receptividade ou, pelo menos, indiferença diante) do aborto provocado.

E há, depois, uma segunda preocupação: a de que a tolerância com este ilícito não coloque em causa aquela que o Tribunal julga ser a hierarquia de bens merecedores de protecção por intermédio das regras jurídicas que expressam o sentir da comunidade política. Em concreto: pretende evitar que se coloque em causa que, primeiro e antes de tudo, é a vida do nascituro, que já vive, que já é, que deve ser protegida.

Digamos, em síntese interpretativa, que a posição do Tribunal assentou na distinção do poder e do dever. Admite que, em dadas circunstâncias, se possa sem punibilidade provocar intencionalmente o aborto; contudo, afirma claramente, e carregando fortemente na tinta, que assim não deve ocorrer, e que a comunidade política se deve empenhar tanto quanto possível em que não se produza semelhante resultado.

Muitas passagens do percurso de fundamentação do Tribunal revelam até quão longe foi neste esforço. Apresentam-se alguns exemplos de uma escrita sem tibieza:

«Em qualquer caso, durante um tal período da gravidez [após a nidação], está-se, no nascituro, perante uma vida individual, já determinada na sua identidade genética e, com isso, na sua singularidade e inconfundibilidade, que, no seu processo de crescimento e de florescimento, não se desenvolve para se vir a tornar pessoa, mas enquanto pessoa. Tão diversas possam ser interpretadas as diferentes fases do processo de vida anterior ao nascimento sob o ponto de vista biológico, filosófico, também teológico, e tenham sido julgadas ao longo da história, trata-se em qualquer caso de um degrau indispensável no desenvolvimento de uma personalidade individual. Onde há vida humana, reconhece-se-lhe dignidade humana.»

«Um equilíbrio que garanta, quer a protecção da vida do nascituro, quer um direito da mulher grávida a interromper a gravidez, não é possível, uma vez que a interrupção da gravidez é sempre matar a vida por nascer. Um equilíbrio também não pode ser obtido (…) prevendo-se que durante um certo período de tempo da gravidez o direito de personalidade da mulher prevaleça e que só depois o direito do nascituro adquire prevalência. Nesse caso, o direito do nascituro apenas adquiriria valor se a mulher não se decidisse por matá-lo na primeira fase da gravidez.»

«Enquanto [o critério d]a insuportabilidade limita o dever da mulher de manter a criança, não elimina o dever de protecção do Estado que vale para qualquer vida humana por nascer. Conduzirá o Estado, em especial, a auxiliar a grávida com conselho e auxílio e deste modo, quando possível, a tentar ganhá-la para continuar a gravidez (…).»

«No diálogo de aconselhamento deve o médico da mulher de modo dar a conhecer e exteriorizar apropriado, sem aumentar receios existentes e dificuldades psíquicas, que a interrupção da gravidez destrói a vida humana.»

-6. Cont. Antes da «ponderação» de valores. Portugal. – Que, enfim, a temática do aborto é perspectivada em primeira linha desde a protecção da vida humana por nascer, é testemunhado pelo também actual regime constante do Direito português. O Código Penal português qualifica o crime de aborto (art. 140.º) como o crime contra a vida intra-uterina (artigos 140.º e ss.), por seu lado modalidade de «crime contra as pessoas» (artigos 131.º e ss.). Certo é que essa acção está despenalizada (ou até mais do que despenalizada) em dadas circunstâncias (art. 142.º); mas fora desse círculo de excepção, o ângulo prevalente é o de que, nesta prática, é contra a vida humana que se atenta, o que precisamente justifica que, por regra, ela haja de ser proscrita.


Imagem de PayPal.me/FelixMittermeier por Pixabay