Sex. Abr 18th, 2025
As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação

Tiago Azevedo Ramalho

 

[O texto introdutório pode consultar-se aqui.]

– 21. A família.Certamente uma das dimensões da vida social que sofreu mais acentuadas alterações no decurso da vigência da Constituição de 1976 foi a família. Um olhar distanciado sobre as últimas décadas permitirá concluir por uma assinalável recomposição do meio vital em que cresce e age o cidadão comum: em lugar de uma quase inevitável família conjugal, interpondo-se estavelmente entre o indivíduo, os demais indivíduos e o poder público, multiplicaram-se as formas monádicas de interacção.

Os projectos de revisão constitucional fazem eco, até certo ponto, desta nova realidade familiar ou dos seus reflexos. Propõe o PS a expressa menção, no artigo 36.º, n.º 2, à protecção das uniões de facto. Semelhante artigo da Constituição é a sedes materiae da protecção da família («família, casamento e filiação»). Se, a respeito de uma outra matéria (cf. o n.º 16), se disse que se estaria a dotar da protecção da letra de forma constitucional o que ainda não se encontrava devidamente estabilizado, bem diferente é o juízo que agora se formula. Com efeito, a inserção da referência às uniões de facto serve de exemplo rigorosamente inverso: de amplíssimo relevo social, a ponto de ser uma forma de vida interpessoal claramente concorrente com a do casamento, com uma protecção jurídica cuja legitimidade não é colocada em causa, afigura-se inteiramente oportuno que a lei civil lhe faça uma menção expressa no plano constitucional. Ainda no âmbito tradicional do Direito da Família, propõe o Partido Chega a expressa previsão, no texto constitucional, de admissibilidade do casamento apenas para maiores de idade (art. 36.º, n.º 2, e 69.º, n.º 3). É proposta que se saúda, embora talvez por razões diferentes daquelas que poderão ter motivado a sua apresentação – impor-se-ia, no entender do autor destas linhas, que se repensasse com amplitude os limiares de maioridade. Teremos adiante, a propósito do direito de voto, oportunidade para reflectir sobre este ponto.

Duas características da actual demografia portuguesa – a baixíssima natalidade e o forte envelhecimento populacional – motivam outras propostas de alteração.

A respeito da natalidade, propõe o PSD que passe a incumbir ao Estado, como incumbência indicada em primeiro lugar a respeito da família, «remover obstáculos à natalidade desejada» (art. 67.º, 2, a)), bem como, em sede de impostos e benefícios sociais, um tratamento equitativo das famílias numerosas (art. 67.º, 2, g)). Outras forças públicas mencionam a protecção da parentalidade no plano laboral: é o caso do PCP (propostas de alteração ao art. 68.º, 4) e do PS (art. 59.º, 2, d)). Finalmente, prevê este último partido uma menção específica, no âmbito das incumbências do Estado em matéria de família, às medidas de «prevenção e combate à violência doméstica e de género» (art. 66.º, 2, i)).

Já a respeito do envelhecimento populacional, propõem o PSD e o PCP alterações de redacção ao art. 72.º, relativo à terceira idade, procurando reforçar a protecção devida a quem se encontre nesta fase conclusiva da vida. Igualmente propõe aquele primeiro partido a previsão, entre as incumbências do Estado, da definição do estatuto do cuidador informal (art. 67.º, 2, l)).

 

– 22. A liberdade de educação.Expressão jurídica do vínculo familiar é o exercício das «responsabilidades parentais». A liberdade educativa, incluindo a dimensão de liberdade de formas organizadas de ensino, merece atenção especial do Partido Chega. Por um lado, propondo que ao art. 36.º, n.º 5, onde hoje se lê apenas «os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos», se acrescente «não cabendo ao Estado imiscuir-se na relação entre os pais e filhos, salvo nas situações estritamente necessárias ao bem-estar das crianças». No âmbito da liberdade de aprender e ensinar, onde hoje se lê que «o ensino público não será confessional», propõe-se, sem colocar em causa a regra, que se acrescente: «sem prejuízo do ensino religioso ministrado pelas diversas confissões, e a seu cargo, aos alunos ou encarregados de educação que o solicitem» (art. 43.º, n.º 3). O direito de criação de escolas particulares e cooperativas – que não têm por que ter índole religiosa – passa agora, na proposta deste partido, a ser «devidamente reconhecido e apoiado» (art. 43.º, n.º 4).

O ideário subjacente a estas propostas encontra-se bem manifestado na nova redacção pretendida para o art. 67.º, nn.º 1 e 3, al. c). O n.º 1: «O Estado reconhece a constituição da família como elemento natural e fundamento da vida em sociedade e da educação dos filhos». E propõe-se igualmente que, entre as incumbências do Estado em matéria de família, caiba, conforme a al. c) do n.º 3, «cooperar subsidiariamente com os pais na educação dos filhos».

Afora certas questões estilísticas, aceita-se a bondade de fundo destas propostas: a saber, a ênfase no papel estruturante da família; e o Estado como intervindo apenas subsidiariamente. Mas não deixa de ser oportuna a interrogação sobre a conveniência de se inserir uma semelhante declaração de princípio no texto constitucional, quando desacompanhada de um conjunto de propostas complementares de alteração que permitam que assuma efectivo significado. Realmente, o que sobra para a «constituição da família como elemento natural e fundamento da vida» numa sociedade monádica, de ritmos laborais que, na maioria dos dias, absorvem a quase totalidade do tempo útil, de regulação intencional pela comunidade política dos passos fundamentais da vida desde o primeiro berço até ao último leito, de inexistentes alternativas aos programas de escolarização obrigatória, etc., etc.? Uma acção política neste campo implicaria modos de concretização daquele princípio que permitissem divisar, por pouco que fosse, a reabilitação de um espaço familiar de fundamental convivialidade. Mas é o que não se vislumbra. Todos, sem excepção, se movem dentro de um mesmo imaginário. Com uma ou outra adjectivação, é a mesma realidade substantiva que marca presença nas propostas de todas as forças políticas: a confiança no Estado moderno como a interface central para cada indivíduo, o mediador de todas as relações sociais.


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