As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação
Tiago Azevedo Ramalho
– 1. A revisão constitucional. – Encontra-se em aberto o procedimento de revisão constitucional. Com efeito, sempre que decorridos cinco anos sobre a última revisão ordinária – a última revisão ordinária teve lugar em 2004, a última extraordinária em 2005 –, cabe aos deputados o poder de apresentar um projecto de revisão constitucional (art. 284.º, 1 e 285.º, 1 da Constituição da República Portuguesa). Logo que assim ocorra, poderão outros projectos ser apresentados no prazo de trinta dias (285.º, 2).
Tendo dado entrada um projecto de revisão constitucional apresentado pelo partido Chega (projecto 1/XV/1, a 6/10/2022), logo os demais partidos (com a excepção do Partido Ecologista «Os Verdes») apresentaram os seus projectos próprios, todos dando entrada a 11/11: Bloco de Esquerda (2/XV/1), Partido Socialista (3/XV/1), Iniciativa Liberal (4/XV/1), Partido Livre (5/XV/1), Partido Comunista Português (6/XV/1), Partido Social Democrata (7/XV/1) e Partido da Pessoas, dos Animais e da Natureza (8/XV/1).
Em observância do Regimento da Assembleia da República, seguiu-se a constituição de uma Comissão Eventual de Revisão Constitucional, já constituída e cujos trabalhos estão em curso, a quem cabe, entre outras competências, submeter ao plenário da Assembleia da República as propostas de alteração ao texto constitucional (art. 118.º, 2 do Regimento da Assembleia da República). As alterações são aprovadas mediante maioria de dois terços dos Deputados em efectividade de funções (art. 286.º, 1 da Constituição), não podendo o Presidente da República recusar a promulgação da lei de revisão (art. 286.º, 3).
Estamos, portanto, com oito projectos de revisão constitucional em cima da mesa.
– 2. O significado da revisão constitucional. – O relevo da revisão constitucional resulta da especial importância do texto normativo que pretende rever: a Constituição. A relevância desta lei fundamental é conhecida.
Por um lado, é texto ordenador do estatuto do poder político, estabelecendo a sua orgânica e fisionomia fundamentais: quais as funções que a si chama (legislativa, executiva, judicial), os órgãos mediante os quais são exercidas (Parlamento, Presidente da República, Governo, Autarquias Locais, Tribunais,…), as competências que lhes são distribuídas (legislar, executar, julgar,…), e os procedimentos que regem o respectivo agir (a que princípios se encontram sujeitos, a que regras de participação, de publicação de actos,…).
Por outro lado, mediante a possibilidade de os tribunais desaplicarem quaisquer normas ou actos que contrariem o disposto na Constituição. O que é possível mediante o sistema de fiscalização da constitucionalidade: todos os tribunais, em qualquer julgamento, devem controlar a eventual desconformidade entre as regras jurídicas que convocam para a resolução da controvérsia submetida à sua decisão com o disposto no texto constitucional (art. 204.º). Também sob este ponto de vista, o texto constitucional circunscreve o espaço do político, excluindo do espaço de livre conformação legislativa um dado conjunto de matérias.
Mas, é claro, além deste significado jurídico – organização do poder político, parâmetro para a fiscalização de toda a legislação –, tem o texto constitucional um especial valor simbólico. Pelo seu lugar singular no conjunto das fontes jurídicas, pelo seu significado político fundamental, é natural que os principais actores do sistema político procurem nele vazar as suas aspirações centrais, para, também através desse mesmo texto, as fazerem parte integrante de um certo imaginário da vida em comum: pelo texto constitucional se procura conformar o orbe político. Interferir no texto constitucional visa, antes de tudo o mais, modelar como que performativamente o meio social.
– 3. Um olhar sobre as oito propostas de revisão constitucional. – Assim se conclui pela conveniência em olhar de perto para os vários projectos de revisão constitucional. Não apenas para conhecer quais as concretas propostas de alteração apresentadas (muitas não serão certamente aprovadas: a maioria de dois terços exigida para a aprovação exigirá consensos de sobreposição), como sobretudo para, desde as propostas apresentadas, se inferir qual o horizonte desde o qual os diferentes partidos vêm pensando a organização política – de que forma, portanto, pretendem que o orbe político seja conformado. Como a pensam realmente? Testemunham as diferentes propostas uma adesão fundamental ao texto constitucional, com a aspiração somente de o desenvolver, ou pretendem imprimir-lhe uma especial inflexão? Confrontam-se alternativas fundamentais de vida em relação – ou nem por isso? De que forma pretendem dirigir o desenvolvimento do texto constitucional?
Para realizar uma tal análise, o presente conjunto de apontamentos, a serem publicados em ritmo hebdomadário, pretende analisar a parte dos oito projectos de revisão constitucional relativas à alteração ao (i) preâmbulo à Constituição, (ii) aos seus princípios fundamentais, e (iii) à respectiva parte I, relativa a direitos e deveres fundamentais. Analisam-se, portanto, as propostas de alteração respeitantes até ao artigo 79.º da Constituição. Fora de consideração ficam as partes dos projectos relativas às partes II, relativa à organização económica, e III, relativa à organização do poder político, da Constituição.
Quer dizer, pretende centrar-se a atenção na parte dos projectos mais directamente dirigida ao modo como se pensa a função e as incumbências fundamentais do Estado (princípios fundamentais) e o modo como por ele é perspectivado o cidadão (parte I, direitos e deveres fundamentais).
Observar-se-á o seguinte iter. Primeiro considerar-se-á a índole geral dos diferentes projectos de revisão apresentados: aquilo a que declaradamente se propõem. Depois glosar-se-ão as principais alterações propostas, segmentadas por matérias. Finalmente, far-se-á um juízo conclusivo.
Imagem de Ezequiel Octaviano por Pixabay