As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação
Tiago Azevedo Ramalho
[O texto introdutório pode consultar-se aqui.]
– 15. Direitos fundamentais. – Avançamos agora para as propostas de alteração aos artigos constantes da Parte I do texto constitucional: aqueles que especialmente respeitam à delimitação dos «direitos e deveres fundamentais» por ele garantidos.
Divide-se esta parte do texto constitucional em três títulos: um relativo a princípios gerais (artigos 13.º a 23.º); outro relativo à modalidade de direitos fundamentais intitulada «direitos, liberdades e garantias», de cariz defensivo da pessoa ante a possibilidade de agressão do poder público (artigos 24.º a 57.º); e um último relativo aos direitos fundamentais intitulados «direitos económicos, sociais e culturais», de índole sobretudo positiva e/ou prestacional (artigos 58.º a 79.º).
Começamos pelas propostas de alteração a disposições constantes do primeiro título.
– 16. «Gender trouble». – Princípios gerais dos princípios gerais, se é lícito o modo de expressão, são, na economia do texto constitucional, a universalidade (art. 12.º) e a igualdade (art. 13.º): os direitos fundamentais garantem-se a todos, e a todos se trata por igual.
É justamente a respeito deste último, do princípio da igualdade, que entra em cena aquela que, de entre as várias propostas de alteração, será talvez a que mais expressa encruzilhadas do nosso tempo. Para a compreender, deve previamente considerar-se a estrutura do artigo 13.º, que se desdobra em dois números. O primeiro prevê o parâmetro geral da igualdade: «Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.» O segundo especifica alguns concretos factores de discriminação que não são tidos por legítimos – ao mesmo tempo que promove a sua relevância. Eis o seu teor: «Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.»
Propõem quatro forças partidárias que, neste número dois, se mencione o factor do género (13.º, 2 PAN; 13.º, 2 PS, que também propõe a introdução da etnia, podendo confrontar-se igualmente a sua proposta de alteração ao art. 59.º, 1; 13.º, 2 BE, que também propõe a referência à pertença racial, deficiência e estado de saúde; e 13.º, 2 L, distinguindo «identidade de género, expressão de género, características sexuais», e acrescentando ainda «idade, características genéticas, estado de saúde, deficiência ou incapacidade»). A tutela da identidade de género é completada com a proposta de alteração ao artigo 26.º, 1, por parte do PAN, prevendo que a todos se reconheçam os direitos «(…) à identidade e expressão de género, à protecção das características sexuais».
Estamos perante a questão do «género», quando entendido como desligado do dado corpóreo de índole biológica. É uma questão crítica? É certamente. Dispõe-se a seu respeito de certezas estabilizadas? Não. Em Estados culturalmente próximos realizou-se um discernimento tal que permitisse, neste âmbito, chegar a estáveis certezas práticas? Desconhece-se.
Estamos, em suma, perante um dos pontos de fractura do nosso tempo (que está longe de obter o eco devido nos fora de maior alcance: mas esse é um diferente problema). Dir-se-ia, por isso, que a sua sede própria seria a regulação por via legislativa comum, justamente em razão da profunda incerteza que reina neste domínio: assim se poderia ajustar-se a regulação normativa, para além ou para aquém, ao modo como gradualmente se adquire uma maior segurança na valoração desta novel e sensibilíssima matéria.
Não é o que pensam, é claro, os proponentes desta possível alteração ao art. 13.º da Constituição. O intuito das respectivas propostas é colocar do lado de fora do espaço de deliberação política a questão da «identidade de género», e substituir um possível e necessário debate biopolítico por uma lógica maniqueística de luta dos «direitos» – que, por o serem e mesmo antes de qualquer positivação, nem sequer se discutem –, contra tudo o que seria apenas reaccionarismo. É o texto constitucional a ser olhado, não como uma prudente e sedimentada ordenação do espaço comum, espelho de amplos «consensos de sobreposição», mas como, havendo esse desejo, livremente frangível, ao serviço das causas de cada hora.
Imagem de Gordon Johnson por Pixabay