Letra viva | Valores de uma cultura que cuida e não mata
Rubrica dedicada à reflexão sobre o dever de cuidar de todos e os riscos de legalizar a eutanásia
Tiago Azevedo Ramalho*
Só mediante a exacta definição dos contornos de uma certa prática é possível ajuizar das suas implicações políticas. No presente debate respeitante à legalização da “eutanásia”, cabe justamente começar por firmar que o próprio termo “eutanásia” – etimologicamente: boa morte – é imprestável: quem, com efeito, recusa uma morte que, antes de ser descrita nos seus contornos, já é apresentada como boa? Não é esse, por certo, o tema de discussão, dado que morte boa ninguém rejeita. Discute-se antes se a provocação intencional da morte de alguém a respectivo pedido deve ou não ser legitimada pelo Direito e, se sim, por quem (Médico? Enfermeiro? Outro profissional de saúde?) e mediante quais pressupostos (Doença terminal? Sofrimento descrito como intolerável? Pedido reiterado?). Não se debate, pois, o que ética e fisicamente alguém pode fazer a si e de si próprio (suicídio!), mas antes a definição daquilo que nós, mediante uma parte de nós, nos consideramos legitimados a fazer aos outros (provocação intencional da morte de alguém; se eventualmente se trata de causa de homicídio legitimado). Por isso a questão não é apenas privada ou pessoal, mas radicalmente política, porque atinente àquilo que a comunidade política entende poder fazer aos seus membros constituintes, arrogando a si o poder de dar a morte a uma pessoa sem ser para protecção da vida de outrem.
A via de justificação ensaiada é a defesa da autonomia individual, manto que aliás tantas vezes tem encoberto a pura ausência de razões: o Estado daria no presente caso uma possibilidade mais de realização autonómica, reconhecendo como válida a possibilidade de a pessoa definir a hora da sua morte – uma como que última, extrema liberdade. Talvez num outro tempo a questão possa vir a ser discutida nesse céu das grandes opções éticas existenciais, tomadas ao cabo de prolongado processo de ponderação de razões, de escuta de posições diversas, de antecipação de horizontes múltiplos, de longa maturação intelectual, em que a pessoa, enfim ladeada pela família e pelos amigos e assistida pela consolação da medicina, decide do destino a dar a si própria. Mas não é essa a hora que habitamos: eis que vemos a erosão de vínculos pertinenciais, à família, ao lugar, ao emprego; a negação ou grave dificultação do acesso a cuidados de saúde; a falta de projecto de participação social para os mais desamparados – tudo aquilo que para nós, seres sociais, é alimento do mais necessário. Mesmo perante este estado de coisas o valor da autonomia é belo, belíssimo. Mas não se diga respeito pela autonomia o que é institucionalização da indiferença ou, pior, de atribuição à pessoa da decisão para que a própria sociedade a conduziu. Nem se diga que é autonomia esclarecida a decisão pelo que completamente se ignora, porque não se pode assumir o que não se consegue antever.
É possível que a “eutanásia” venha em breve a ser aprovada (como também é possível o seu contrário, conforme nos mostrou a experiência mais recente). Como quer que seja, a prudência política reclama que bem se atente nas circunstâncias concretas em que tomará uma deliberação, uma vez que é nesse contexto, o concreto, que a deliberação produzirá os seus efeitos. Se em mais não pudermos acordar, assentemos ao menos no seguinte: não é da autonomia de seres emancipados que se está a discutir, mas do exacto inverso. Tratamos sim do modo como a comunidade deve responder à experiência de sofrimento dos seus mais frágeis, aqueles cujo destino, por falta de outras estruturas de apoio, mais radicalmente depende das instituições políticas e sociais e a quem, no momento em que se descobrem desorientados pelo sem-sentido, a comunidade eventualmente nada entende oferecer a não ser o próprio nada.
Evidentemente que há outros caminhos possíveis.