Sáb. Mai 24th, 2025
Direto ao contraditório | Uma rubrica dedicada à reflexão crítica sobre as certezas de sociedade tidas como insofismáveis

Tiago Azevedo Ramalho*

Num texto recentemente publicado nesta página (“Algumas observações sobre a COVID 19 e os seus efeitos – Notas à margem da leitura de Agamben”), procurei sublinhar que um dos traços marcantes do período de esforço de contenção da COVID-19 foi a compreensão da vida enquanto “nua vida”, isto é, qual mera “vida biológica” que cumpriria proteger a qualquer custo e de modo absoluto (ponto n.º 2). Rigorosamente, a crítica não se dirigia ao significante, isto é, a que se protegesse o bem “vida”, mas à sua restrição de significado a ponto de por ele potencialmente se entender somente o mero facto biológico da sobrevivência natural.

Em razão da necessária concisão desse texto, o entendimento aí apresentado pode porém fazer surgir a seguinte dúvida: acaso a defesa de que a vida humana deve ser considerada como mais do que mera vida biológica não conduzirá a que se possa defender, noutros quadrantes, que lhe seja lícito colocar intencionalmente termo quando porventura se entenda que ela, por razões de diferente ordem, se tornou “indigna” de ser vivida?

Pelas razões que indicarei no presente texto, penso que a resposta é negativa: longe de abrir brechas numa cultura de protecção da vida, a linha argumentativa antes exposta promove-a de um modo mais pleno.

1 – Entre a natureza e a abertura à cultura. – Ao sublinhar-se que a vida humana não deve ser reduzida em nenhum caso à “nua vida”, não se pretende em nada desconsiderar o valor da vida biológica, mas recolocá-la sob a óptica correcta. Os fins a que, através da vida biológica, a pessoa se pode abrir – a convivialidade, a socialidade, a fruição do mundo natural, etc. – pressupõem a própria vida biológica enquanto tal. Vida biológica e abertura à sociabilidade e à cultura encontram-se, assim, em estreita relação: a primeira como suporte vital da segunda. Se a primeira sem a segunda é privada de sentido, a segunda sem a primeira é carecida de possibilidade.

O ser humano é, ontologicamente, natureza aberta à cultura, e nunca apenas natureza ou apenas cultura. Mas é apenas uma “abertura”, uma potencialidade, uma vez que o efectivo desenvolvimento em acto das suas aptidões culturais depende de condicionalismos culturais, a ponto de, quando estas condições não estão efectivamente reunidas, as respectivas capacidades culturais (e mesmo biológicas…) não se chegarem a realizar de um modo pleno. Dá-se como que uma ablação, uma amputação, do que a pessoa poderia ser num ambiente estruturado. E não só quando a pessoa é coarctada nos primeiros momentos e anos de vida, mas até ao termo da existência biológica.

Por isso se entende que, ao retirar-se a possibilidade total, ou quase total, de um certo tipo de sociabilidade, já se está a privar a pessoa de uma parte fundamental do que é o bem vida (daí, aliás, o extremo custo das penas de privação da liberdade).

2 – A tensão entre a vida biológica e a vida socializada. – Via de regra, estas duas dimensões da vida humana – a vida meramente biológica e a vida “cultural”, “social” – não chocam entre si. Se não é oferecido o devido cuidado ao nosso próximo, não é por razões de ordem sanitária, mas por distracção, por indiferença, mesmo por efectiva impossibilidade. Mas em tempos de pandemia as duas dimensões encontram-se em conflito: a sociabilidade que a vida biológica proporciona, e a que em boa medida naturalmente conduz, coloca em perigo a própria vida biológica.

Perante tal conflito, colocam-se duas vias de opção possíveis: ou optar por proteger apenas uma das dimensões da vida humana, seja a biológica (impedindo a sociabilidade), seja a “cultural” (colocando em amplo risco a vida biológica), ou procurar, ainda assim, uma certa harmonização entre ambas, admitindo certas formas de sociabilidade, ainda que com risco para a vida biológica, e restringindo outras formas de sociabilidade, para protecção da vida biológica.

Qualquer uma daquelas primeiras linhas de justificação absolutiza uma das dimensões da vida humana, conduzindo, ora ao possível sem-sentido da existência, ora à negação da própria vida. O caminho mais adequado, portanto, é o de tentar um equilíbrio entre as duas dimensões. Mas nem todos parecem ter a mesma perspectiva: um dos sinais paradoxais dos dias mais críticos de confinamento foi o contraste entre alguns idosos que circulavam na rua, a céu aberto, de rosto descoberto e nada apreensivo, enquanto outros, bem mais jovens e entrincheirados nos seus veículos, conduziam de olhar amedrontado e com máscara de protecção.

Optando-se pela harmonização, será certamente de admitir que certas formas de interacção social sejam amplamente restringidas – grandes unidades fabris, aglomerações significativas de pessoas, etc. –. Mas porque de harmonização se trata, não se deverá cortar inteiramente o espaço de socialização física, presencial, pois, nesse caso, o acento é colocado excessivamente na protecção da pura vida biológica. Essa é a razão pela qual se torna dificilmente sustentável a repetida insistência em que o convívio familiar ou afectivo fosse restringido a ponto de uma parte de nós ser deixada em completa solidão. Se são muito louváveis as redes de auxílio que, com o esforço voluntarioso e gratuito de muitos, garantiram que aos mais isolados chegasse o pão de que precisavam, não se deverá ainda assim esquecer que nem só de pão vive o homem.

A este respeito, relembro dois fenómenos que, durante os dias do Estado de Emergência, geraram ampla discussão pública: as celebrações públicas do 25 de Abril e do 1.º de Maio. À luz do que venho escrevendo, parece-me perfeitamente aceitável que possam ter lugar tais ritualizações culturais, mesmo que impliquem a assunção de um risco que, se guiados apenas pelo valor da “sobrevivência natural”, é desnecessário: traduzem precisamente a afirmação de que a vida é sempre mais do que a vida biológica e que, mesmo em períodos de grande contenção, há que assinalar momentos centrais do ponto de vista político. O que é de censurar é haver-se entendido serem esses os únicos casos, e não outros, que justificariam uma excepção ao estado de excepção: em hora de total contenção, o único bem simbólico que se aceitou afirmar, mesmo com risco para a protecção da vida biológica, foi a ritualização reprodutiva do próprio poder político ou de certos movimentos sociais (“religião cívica”), e não os ritos afectivos, os ritos familiares, os ritos fúnebres. Como se afirma que, acima da realidade biológica, apenas importa o todo do poder que enquadra e rege os corpos dos cidadãos que, quais mónadas, existem isolada e desagregadamente, sem uma teia que os insira em relações de proximidade. Remeto para o n.º 3 do meu texto referido no princípio deste escrito.

3 – A questão da eutanásia. – Se por eutanásia se entender a conformidade à lei da provocação intencional da morte de alguém seu pedido, em razão da situação de particular enfermidade em que se encontra, as razões antes apontadas em nenhum caso poderão conduzir à defesa da respectiva legitimação – antes pelo contrário. Com efeito, divisam-se grosso modo duas grandes linhas argumentativas da eutanásia: a primeira assentaria na defesa da autonomia individual; a segunda assentaria na degradação da “vida humana”, a tal ponto que perderia a razão de ser. Sendo que, normalmente, as duas linhas de argumentação são conjugadas, por ex. apenas se atribuindo relevância ao pedido de provocação intencional da própria morte (primeira linha de justificação: elemento voluntário) quando a pessoa esteja em condições de particular dor ou doença (segunda linha de justificação: “indignidade” da vida).

Sobre a impertinência, em meu entender, daquela primeira linha de justificação, versou o texto “Implicações políticas da eutanásia”. Mas agora estamos em condições de compreender de modo mais apurado a inadmissibilidade também da segunda linha argumentativa. Pois ela assenta em considerar que, em dadas circunstâncias, a vida humana é mera biologia degradada, reduzindo o valor da pessoa aos processos físicos do seu corpo em corrupção, a ponto de se poder considerar que perdeu o respectivo valor.

Tal argumentação assenta, porém, num equívoco: a redução da pessoa à mera condição monofisita, simples natureza degradada, quando continua a ser sempre abertura à relação com o meio envolvente.

Ora, se a questão da eutanásia respeita ao modo como a sociedade politicamente organizada entende dever lidar com os seus mais frágeis – aqueles cuja fragilidade induz ao pedido de que seja provocada intencionalmente a sua própria morte –, a resposta propriamente humana e humanizante passa justamente por gerar as condições sociais necessárias para que a pessoa, mesmo em situação de grave degradação física (na dimensão física se incluindo a neurológica), continue a experimentar a sociabilidade e a abertura ao mundo. Isto é, passa por negar que a vida humana, também nesse momento, possa ser (erroneamente) sentida, ou experimentada, como uma vida corrompida – essa forma degradada de compreensão do homem que, quando visto como “algo” que já não “presta” (a ponto de o próprio nisto acreditar), se apresta a eliminá-lo do círculo da convivialidade.

Se a vida humana é certamente mais do que a simples vida biológica, também nunca poderá ser menos. O primeiro ponto conduz, entre outros aspectos, a que se aceite que a própria vida, para poder ser plenamente vivida, implica incorrer muitos riscos, e implica também que à pessoa sejam dadas, tanto quanto possível, as condições para viver a sua abertura ao mundo de acordo com o modo de que seja capaz. Mas o segundo impõe que em nenhum caso contra ela se atente deliberada e intencionalmente.


*Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Direito da Universidade do Porto
Imagem de Rafael Rafa por Pixabay