Seg. Abr 28th, 2025
‘Duas Asas’ – rubrica dedicada ao pensamento e escritos de Edith Stein
(Parceria com o Carmelo de Cristo Redentor – Aveiro)

O SER HUMANO: UMA UNIDADE NO SEU SER

Javier Sancho*

Toda a compreensão correcta do homem parte da compreensão do seu ser como ser unitário. Não se trata de uma alma que vive num corpo, mas de uma unidade de corpo, alma e espírito. Somente desde a unidade se pode compreender correctamente cada um dos «estratos ou componentes» do ser humano. Estes elementos constitutivos são os que definem a natureza do homem, um ser que, ao mesmo tempo, é espiritual e material, que se encontra como ponto de união entre as duas dimensões.

A unidade do homem é algo que lhe corresponde, mas que, ao mesmo tempo, tem que conquistar como meta da sua plena realização. É um dos objectivos da vida da graça, que procura a unificação da natureza em si e com Deus, devolver ao homem o seu  estado original, imagem autêntica da unidade trinitária. Neste sentido, a recuperação da unidade pessoal é vocação que o homem tem que realizar na sua vida. A pessoa unificada é uma «pessoa espiritual que está numa livre posição não só diante do seu corpo, mas também diante da sua alma» (SF 442). Realçamos os elementos mais evidentes em Edite:

a) Unidade como elemento constitutivo

No seu primeiro trabalho, na sua tese de doutoramento (PE) já se manifesta sobre a unidade do homem, na qual analisa a «empatia» como uma acto da pessoa. As suas afirmações são evidentes no plano psíco-físico onde já se manifesta essa unidade. Ao definir o indivíduo ou o eu individual, escreve: «um objecto unitário no qual a unidade de consciência de um eu e de um corpo físico se juntam inseparavelmente… A unidade testemunha-se em que certos processos se dão como pertencentes ao mesmo tempo à alma e ao corpo vivo…» (O problema da Empatia, Ed. Trotta, Madrid 2004, 75).

A esta unidade, perceptível no plano experiencial-fenomenológico, juntam-se outros elementos de carácter teológico que a confirmam. A unidade manifesta-se como algo «essencial» ao ser humano, como o elemento que ajuda a compreender depois o peculiar de cada «componente». E desta unidade pessoal do indivíduo temos já uma primeira e evidente consequência para a totalidade da sua vida: corresponde à sua essência e, portanto, ao seu ser, a unidade da sua vida espiritual com a vida corporal: «À essência do homem enquanto tal pertence a dupla natureza seguinte: ser uma pessoa espiritual e ser informado corporalmente. Enquanto espírito, a essência forma parte do mesmo género de ente de todos os espíritos criados. Enquanto informado orgânica-corporal- psiquicamente, forma parte do género dos seres vivos. Mas, visto que o ser espiritual e o ser orgânico-material-psíquico não se apresentam nela separados e justapostos mas são um, é, por conseguinte, mais justo – parece-me – falar de um género particular» (SF 520-521).

Esta unidade essencial do homem tem também as suas consequências na acção da graça, que não se limita a ser um dom para a alma, mas abrange a totalidade do ser do indivíduo: «Visto que a graça é algo que há na alma e visto que a alma é uma só e está unida com o corpo, por isso a vida da graça não se pode desenvolver separadamente da vida natural, mas há-de fazer-se uma só coisa com ela, e a graça deve empapar o homem inteiro, alma e corpo» (OC IV, 877-878).

Muitas mais são as afirmações que se encontram em Edite Stein sobre o conceito de unidade, mas, no fundo, confluem para o mesmo sentido. Um aspecto que convém realçar é o de como se realiza e como influi na vida do homem esta união. E isto dependerá do modo como se entenda a relação que existe entre ambos os elementos. Explica-nos brevemente essa relação nestas linhas: «A alma encontra o seu ser no corpo, mas o corpo alcança o seu ser através da alma, e não vice-versa» (SF 100,  nota 39). Ambos se ajudam e complementam, mas em sentido diverso. Aqui é onde se encontra o ponto a partir do qual se poderia falar de diferenciação dos elementos sem cair em dualismos.

 

b) Sentido e fundamento teológico da unidade do ser humano

A unidade do homem é uma característica essencial e, portanto, não é algo nem casual, nem acidental. Unidade, pois, que está enraizada no seu ser mais profundo, na sua origem. E o seu princípio encontra-o precisamente na obra da Criação e no seu Criador, uno e trino.

Edite Stein analisa atentamente os textos do Génesis para pôr de manifesto que o homem é imagem de Deus. Enquanto tal, o homem alcança a sua perfeição na medida em que reproduz em si mesmo esta imagem. Deus é uno e trino, e o homem, analogicamente, também. Eis, pois, um princípio fundamental para a autêntica vida cristã que consistirá em alcançar, ou melhor ainda, em recuperar a unidade perdida com o pecado original.

Por outro lado, o homem, ou melhor dito, a humanidade foi criada como um todo. E em Cristo foi redimida também como um todo (cf. OC IV, 236-237). Além disso, em Cristo todos são membros de um único corpo cuja cabeça é Ele (cf. SF 525 ss).

Na pessoa do Verbo encarnado, enquanto Logos criador e enquanto que com a sua encarnação junta a natureza humana com a divina, o homem encontra outra confirmação da sua chamada à unidade (SF 257). A própria obra da redenção concede ao homem a possibilidade de recuperar o estado original de harmonia (SF 533-536).

 

c) Unidade como vocação

As reflexões antropológicas e teológicas em relação à unidade do homem, confluem numa afirmação categórica: a unidade no homem forma parte do seu ser e apresenta-se como uma tarefa, uma vocação. Edite entende-o a partir de diversos pontos de vista:

– como chamada à unidade pessoal, que é exigida pela natureza do homem tal como se encontrava no estado original, e também pela Unidade realizada e vivida por Aquele que é o seu modelo. Fruto da mesma temos a pessoa autêntica definida por Edite como «pessoa espiritual» porque «está numa livre posição não só frente ao seu corpo, mas também frente a frente com a sua alma» (SF 442).

– como uma humanidade chamada à unidade dos seus membros. O homem define-se também como ser de relação e a sua vida desenvolve-se no meio da comunidade humana. Encontra a sua razão de ser em si mesmo, no seu ser de filho de Deus e de um modo especial, na sua condição de membro do Corpo de Cristo (SF 525 ss).

– como o homem e toda a humanidade são chamados à unidade com Deus. É este o fim último ao qual o homem foi chamado, porque só em Deus encontra a razão do seu ser e do seu aperfeiçoamento (cf. SF 518-519).

– Convém notar que quando Edite fala de alma refere-se sempre, excepto quando procura distinguir os elementos entre si, à pessoa na sua totalidade, na sua unidade essencial.

Concluindo, podemos afirmar que o pensamento steiniano sobre a unidade do homem, supõe uma ruptura radical com todo o dualismo. Ela não aceita essas visões que pretendem reduzir o ser humano a um composto de alma e corpo. Poder-se-á falar de «elementos constitutivos» ou de «estratos», mas sempre partindo da unidade que é a que constitui o ser.

*Javier Sancho. 100 Fichas sobre Edith Stein. Edições Carmelo, Avessadas, 2008. Pp. 166-167.


Imagem de hmauck por Pixabay