Ter. Fev 18th, 2025
Modos de interação entre ciência e religião

Pontes


Pontes (V) Ser—Devir

Miguel Oliveira Panão

Blog & AutorNewsletter

Aceito-te tal como és. Aceito quem sou. Mas serei sempre quem sou ou quem era, ontem, é diferente de quem sou, hoje, e serei amanhã? A pergunta parece entrar demasiadamente no campo da abstracção e da filosofia, ou até da teologia e espiritualidade, mas não é a existência a base dos nossos propósitos de vida sempre que o ano muda?

Cada mudança de ano acompanha-se de um desejo fresco em sermos diferentes no futuro. O pensamento do amanhã assenta mais no nosso devir do que no nosso ser. E, por vezes, entre o que somos e o que sonhamos ser parece existir um abismo obscuro e intransponível. O nosso devir ou “dever ser” pode entrar em confronto com a realidade que somos quando pensamos naquilo que desejaríamos ser. Nesse sentido, seria valioso poder encontrar uma ponte que nos ajudasse a ligar o ser ao devir, de modo a que os nossos sonhos e propósitos pudessem realizar-se, a vida aspirada entrasse em consonância com a vivida, e o nosso exterior fosse mais coerente com o interior.

Uma ponte possível poderia inspirar-se na mecânica quântica. Numa das interpretações daquilo que acontece no mundo do infinitamente pequeno, o acto de observar leva à existência daquilo que se observa e que antes dessa observação não passava de uma probabilidade de existir. É como se tudo fosse devir e precisa do olhar de alguém para ser. Será essa a ténue razão de tantas pessoas quererem ser observadas para que os ajudem a sentir que existem?

Uma segunda ponte possível poderia ser planear. Quando criamos planos definimos os passos concretos a dar para aproximar o ser do devir e, assim, chegar a um novo modo de ser semelhante ao sonhado. Mas quando olhamos o ano que passou em retrospectiva, muitas vezes nos confrontamos com tantas coisas que pensámos realizar e acabaram por ficar pelo caminho. Vivemos uma certa frustração e podemos concluir que não vale a pena planear se, depois, acabamos por não cumprir e ficar perturbados com isso.

Uma terceira ponte poderia ser escolher, antes de planear. As escolhas orientam-se pelos nossos valores, mas quando examinamos a consciência e sentimos como a sobrevivência se sobrepôs aos valores daquilo que pensávamos ser a verdadeira vivência, surge o contraste dissonante entre o ser e o devir. Não é o desejo mais profundo do ser humano que o ser e o devir sejam um só? Talvez a ponte seja a própria existência.

O nosso ser é devir. Quer isto dizer que não és assim, e não serás sempre assim, e tudo o que te acontece muda quem és.

És porque te tornas. És na medida em que estás sempre a mudar. E não estou a pensar apenas no sentido físico, mas nos sentidos mental e espiritual. Quando te olhas ao espelho pretendes ver quem és, mas o que vês provém do reflexo daquilo que eras porque demorou tempo para que a luz se reflectisse no espelho. Por isso, olhar para o espelho é contemplar quem eras há um instante porque, na realidade, já és diferente. Por falar em espelhos, fruto da tecnologia, costumamos questionar — o que podemos fazer com esta nova tecnologia? — quando a verdadeira questão que a existência, como ponte, suscita é — o que nos tornamos com a tecnologia que fazemos?

O facto de existirmos é um dom imenso que nos permite planear, escolher e dar passos. Entendo que não seja fácil pensar na nossa existência por corrermos o risco de nos perdermos em jogos de palavras que pouca influência exercem sobre o que vivemos todos os dias e nos confronta com o que somos. Mas repara na subtil transformação da última palavra na frase anterior — …o que vivemos todos os dias e nos confronta com o que nos tornamos.

Tudo o que faço, torna-me. Cada atitude está na base do meu devir. Existo não porque me veem, assim como acontece na mecânica quântica. Existo porque me relaciono com o existir dos outros e das coisas. Cada gesto que edifica o que está à minha volta, edifica-me. Cada sorriso que desperto no outro faz-me sorrir. E quando procuro conhecer o outro por aquilo que é, sem me dar conta, estamo-nos a transformar reciprocamente através do nosso relacionamento. Por isso, no instante ínfimo depois de te conhecer, mudei-te, e já não és o mesmo que eras antes de existires comigo. Toda a nossa existência é uma ponte transformativa entre ser e devir.


https://pixabay.com/pt/