Sex. Mar 29th, 2024

Intelligo quia credo | Variações sobre a fé cristã…

(Parceria com Ecos da Ria – rubrica mensal)

Luís Manuel Pereira da Silva

A fé em Deus criador é, nestes tempos tão marcados pela consciência científica, fonte de mal-entendidos e equívocos, tantas vezes responsáveis por algum afastamento entre ciência e fé cristã.

Proponho-me abordar esta matéria da fé cristã num registo de construção de pontes. Ser crente não tem de significar recusa de ciência, tal como a opção pelo estudo científico não deverá comportar o abandono da fé.

É, aliás, atribuída a Pasteur uma afirmação (que nunca consegui comprovar, mas que é credível) que ilustra a convicção de que parto: ‘um pouco de ciência faz ateus; um pouco mais de ciência faz místicos…’

Estou convencido disso.

Basta recordar que alguns dos maiores cientistas da história foram, simultaneamente, crentes, sem que tal comportasse qualquer esquizofrenia ou bipolaridade.

Recorde-se, a título ilustrativo, nomes como Copérnico, Clavius (que dirigiu a equipa que definiu o calendário gregoriano), Steno (geógrafo), Lavoisier, Marconi, ou refira-se o papel singular do observatório astronómico do Vaticano ou da sua academia pontifícia das ciências (a que, aliás, pertenceu Stephen Hawking e outros grandes cientistas, crentes e não crentes) ou, ainda, que o primeiro a formular a possibilidade de o universo ter começado numa grande explosão foi Georges Lemaître, um padre de origem belga, para se perceber, com facilidade, como a presunção de um conflito entre ciência e religião cristã nasce de um equívoco.

Não é minha intenção alongar-me na enunciação das razões que parecem consolidar essa ideia de conflitualidade. Irei, apenas, sublinhar como a fé em Deus criador não conflitua com os dados da ciência. Bem sabemos, porém, como muito contribuiu para essa convicção da conflitualidade entre fé cristã e ciência a mal explicada história do conflito entre Galileu e a Inquisição (reforce-se que, contrariamente ao preconceito, Galileu não foi queimado pela inquisição; foi processado, mas não executado, tendo-se mantido cristão até ao final da vida… Bem certo que os pressupostos de um tal processo são, hoje, considerados como errados, do ponto de vista epistemológico, isto é, quanto à natureza dos saberes científico e religioso, mas importa, também, ajustar ao que de facto aconteceu, sem exceder os limites da verdade histórica.) ou a dificuldade em acolher as conquistas de Darwin e do evolucionismo, ainda que, também aqui, seja necessário observar que Darwin era crente e conclui a sua obra ‘a origem das espécies expressando a admiração a que o conduzira a constatação da evolução da espécies. No último parágrafo da sua obra de 1859, interroga-se, de forma admirada: ‘não há uma verdadeira grandeza nesta forma de considerar a vida, com os seus poderes diversos atribuídos primitivamente pelo Criador a um pequeno número de formas, ou mesmo a uma só? […]’ (Edição Ad astra et ultra, 2010, p. 617)

Observe-se um pressuposto evidente: se a afirmação de que Deus é criador partir de uma leitura literalista (ao pé da letra e convicta da historicidade das narrações) do texto de Génesis, dificilmente não teremos um conflito. Se toda a narrativa bíblica for interpretada num registo de convicção historicista, e os dados da sequência presente na narrativa de Gn 1,1-2,4a forem tomados como a enunciação de uma factualidade verificável, então o conflito é real.

Esse foi o erro epistemológico que pareceu presidir a muitos dos conflitos que a história recorda.

Recolha-se, porém, da longa história da tradição, aquilo que deve ser entendido como afirmando que Deus é Criador.

A fé em Deus Criador não pretende colocar – como bem recorda S. Tomás de Aquino – Deus entre as outras causas que ele designa como ‘causas segundas’. Na ordem da natureza, há nexos causais em que umas causas originam novas condições que, por sua vez, são causam de novas condições e assim sucessivamente. Mas, aqui, estamos na ordem das referidas causas segundas.

A afirmação sobre o facto de o que é ter um Criador é de outra natureza.

É a pergunta sobre se o que existe pode ser e ter origem em si mesmo.

Dada a condição finita de tudo o que é, carece de explicação a origem do que existe por não se conseguir entender que o finito pudesse começar sem se extinguir no imediato momento em que se iniciava, a não ser que se suponha uma origem que não tenha origem em outrem e que seja fonte incessante de ser, concedendo ao que é um dinamismo que se encaminha de menos para mais. Mas isso só é possível supondo a referida origem permanente que mantém no ser o que, de outro modo, nada seria.

Dizendo de modo mais simples:

Afirmar um criador não é referir-se ao modo como as coisas se geram umas às outras, não pergunta sobre ‘como’ chegámos ao que somos, hoje. A pergunta sobre ‘como’ é respondida pelas ciências que nos explicam os fenómenos, que nos explicam como é que chegámos até aqui, mas que não se interrogam sobre a causa última (porque é que existe o que existe?) nem sobre se tudo tende para algum fim (a causa final).

John Haught, um dos grandes teólogos da atualidade que têm estudado estas matérias (muitos poderíamos referir: Arthur Peacocke, John Polkinghorne, Guy Consolmagno, etc.), refere que, entre ciência e religião não tem de haver conflito, na medida em que ambas se situam no que ele designa como ‘estratos de explicação diferentes’. Refere isto na teoria que ele define como sendo a da ‘explicação estratificada’.

E ilustra com uma história concreta.

Se eu vir uma chaleira ao lume, poderei perguntar-me a que se deve que ela ferva. Posso explicar que tal se deve à colisão dos eletrões por motivo da energia calorífica produzida pelo fogão.

Mas eu posso continuar com a questão.

Pois bem, mas, por que razão está a ferver, afinal?

A resposta poderia ser a de que está ali porque alguém a colocou lá, criando-se as condições para que fervesse.

Mas eu poderei insistir: mas para quê?

Para que alguém possa ter água para o chá que pretende beber…

E poderíamos avançar, mas já nos apercebemos de que estamos em estratos diferentes, em ordens diferentes de interrogações que não se anulam, antes se complementam no sujeito humano que quer saber mais do que o que observa nos fenómenos.

Perguntar-se sobre se o universo tem um Criador é muito mais do que perguntar sobre ‘como’ chegámos ao que somos: é perguntar sobre se o universo (tudo o que é…) nasce de uma Vontade e se encaminha para um horizonte ou se, afinal, é fruto de acaso. É perguntar-se sobre o sentido do que existe…

Falar de Deus Criador é, também, sublinhar que Um é a Origem transcendente e outra a criação que, por ser autónoma em relação à Sua origem, tem regras e leis próprias, inerentes à sua autonomia. Diz, por fim, também, que esta realidade não é autossuficiente, o que, aliás, parece poder concluir-se da leitura do relato da queda de Adão, metáfora (epónimo) de toda a Humanidade: o pecado de Adão é a presunção da autossuficiência, impossível à condição criatural. Somos seres contingentes, (somos mas podíamos não ser), dependentes, frágeis e, por isso, abertos (aos outros, ao mundo, a Deus…).

Este brevíssimo excurso permite-nos verificar que o registo em que a leitura cristã se situa não tem pretensões de cientificidade, mas antes existenciais e de interpretação da condição daquilo que existe.

Num tal registo, entre ciência e fé cristã não só não pode existir conflitualidade como, pelo contrário, deve haver uma complementaridade que acontece no sujeito humano e que nasce da diversidade de interrogações que se coloca esse mesmo sujeito humano, o qual, para umas, encontra respaldo na natureza própria das respostas científicas, e, para outras, precisa da fé para vislumbrar o horizonte de resposta.

Se assim for, um pouco mais de ciência despertará o místico que se oculta no interior de cada um sempre que se deixa embevecer pela beleza de uma paisagem, pelo mistério de uma vida que nasce, pelo equilíbrio estético de um rosto, pela própria fragilidade que resiste… Porque neles vislumbrará a transparência do Criador que se manifesta, como causa última, nas causas segundas.


Imagem de Yuri_B por Pixabay