Intelligo quia credo | Variações sobre a fé cristã…
(Parceria com Ecos da Ria – rubrica mensal)
Luís Manuel Pereira da Silva
Prossigamos a nossa reflexão sobre o Credo, olhando, ainda, para a sua primeira afirmação, propondo-nos enfrentar a ‘espinhosa’ questão da relação entre a omnipotência de Deus e a existência do mal.
O carácter espinhoso desta questão tem uma celebérrima formulação no conhecido dilema (ou paradoxo) de Epicuro que aqui resumimos: perante a existência do mal, deparamo-nos com um aparente paradoxo – ou Deus é omnipotente e não é bom (pois não parece querer fazer desaparecer o mal); ou, admitindo-se que é bom, não é omnipotente, pois, ainda que querendo extinguir, não o consegue, não sendo, por isso, Deus.
Na procura de uma via de resposta (pois não pretendemos encerrar o assunto – como poderíamos pretendê-lo?!…), somos devedores de muitos que, antes de nós, refletiram sobre esta matéria. Destacamos, porém, a particular síntese de Andrés Torres Queiruga, que, com frequência revisitamos. Também aqui estará repercutida…
Comecemos, então, por reconhecer que o desafio é significativo. Tanto que, era após era, o assunto regressa, como motivo e pretexto, na maioria das vezes, para sustentar a negação da existência de Deus ou, então, da sua indiferença perante o mundo, à maneira do deísmo…
A ordem do mundo e a emergência, nele, dos sinais de sentido, entre os quais se destaca o amor (como doação gratuita), na linha do que afirma W. Pannenberg, servem-nos de marcas da Sua existência que bem sabemos não caber na ordem da demonstrabilidade (como, aliás, com tudo o que é mais importante para os humanos: como demonstrar o amor? Como demonstrar a amizade? Como demonstrar os motivos para a confiança? Demonstrar seria matar a sua própria natureza ‘indemonstrável’, mas sem que tal signifique não poder ‘mostrar-se’ e ‘revelar-se’, cabendo, de seguida, ao sujeito, fazer o caminho da aceitação e acolhimento… Esse é o terreno própria da fé religiosa: não demonstrável, mas ‘mostrável’ e ‘revelável’… Neste caso, não apenas por limite do sujeito, mas também pela incomensurabilidade do ‘objeto’.)
Com este pressuposto, partamos em busca de uma via de conciliação que supere a ‘aparência’ de paradoxo reunida no impropriamente designado ‘dilema’ de Epicuro, acima resumido.
Para tal percurso, comecemos por sublinhar uma convicção: se Deus não é apenas Vontade pura, mas a fonte do Bem e da Verdade, o paradoxo tem de ter forma de ser superado. Seria contraditório.
Com este axioma assim descrito, então, caberá concluir que o paradoxo deverá ter pressupostos erróneos que o criam. Dito de outro modo. A omnipotência de Deus pressuposta no ‘dilema’ terá de ser vista de um modo distinto da que está na génese do paradoxo.
É curioso que o credo nicenoconstantinopolitano coloque a ideia de omnipotência associada ao Pai (em grego, é dito que «pisteuómen eis éna Theón, patéra pantokrátora,…»), como que afirmando que é na paternidade de Deus que está a omnipotência, o que nos permite, desde já, vislumbrar o que tantas vezes é repetido, mas sem que se lhe associe detida reflexão: a omnipotência de Deus, na visão cristã, é a omnipotência do amor. Mas, o que significa isso?
Não poderá significar uma omnipotência de um poder que substitui, que tudo faz, pois seria contraditório com o registo de liberdade em que toda a revelação cristã assenta. Deus cria, mas fá-lo em e para a liberdade. Logo, não é pensável a Sua ação sem ser com os dados que o pressuposto da liberdade implica. Falar de amor implica, necessariamente, e sem cair em qualquer contradição, o reconhecimento da adesão livre.
Mas continuamos com uma dificuldade. Se Deus age permanentemente, cria constantemente, é a causa primeira de tudo, como, então, conciliar essa ‘omnipresença’ de Deus com a existência do mal?
O pensamento de Andrés Torres Queiruga é, aqui, uma ajuda preciosa.
Queiruga afirma que há que compreender que o próprio ato de criar (que é permanente) é, em si mesmo, já ato de salvar. E porquê? Porque, no ato de criar, Deus, que sabe que cria para o limite (toda a criatura é ‘não Deus’, logo, está marcada pelo limite ou, como afirma Paul Ricoeur, pela ‘falha’, pela possibilidade do mal), decide salvar do nada, mesmo consciente dessa condição sine qua non de toda a criatura (ser limitada). Então, toda a criação nasce da perfeição de Deus que a deseja perfeita, mas que ousa criá-la, mesmo sabendo que ela não será, enquanto criatura, correspondente ao que Ele mesmo deseja, dada a sua natureza criatural. O limite define-a, mas também a tensão para o ilimitado. Porquê esta tensão?
E a resposta para o dilema começa a vislumbrar-se, aqui.
É que a omnipotência de Deus, que só é pensável no registo da criação no e para o amor, e, logo, na e para a liberdade, não é, primeiramente, a de uma causa eficiente que arrasta e força, mas sim a de uma causa última (que é, como pensa Aristóteles e Tomás, ao mesmo tempo a causa primeira) que atrai.
Como chegar a este entendimento?
Se virmos com um olhar fino toda a história da revelação judaico-cristã, perceberemos que toda ela está assente num dinamismo estruturante: Deus chama. O conceito de vocação é dos mais frequentes.
Ora, o que nos evidencia isso para esta reflexão que aqui estamos a fazer?
É que Deus é omnipotente na força de atrair. Mas responder-lhe é ‘tarefa’ dos sujeitos criados. Quando a resposta coincide com o chamamento, o ser realiza-se e acontece – eis-nos perante o Bem.
Mas, quando a resposta é de recusa, de afastamento em relação à atração, emerge o mal.
É por isto que o relato de génesis coloca na liberdade a origem do mal, pois a ‘falha’, o limite é apenas condição de possibilidade. É na resposta efetiva e real que o mal acontece. Até aí, não era mais do que possibilidade em aberto.
A abordagem é abstrata e teórica, bem certo, faltando-lhe um condimento. Vamos buscá-lo a uma imagem.
Na Igreja de Santa Madalena, em Vezelay (uma igreja dedicada em 21 de abril de 1104), há um capitel particularmente ilustrativo do que nos falta aqui acrescentar. Nesse capitel, são retratadas duas cenas: na primeira, vemos um enforcado; na segunda, percebemos que esse enforcado é levado aos ombros por Jesus Cristo. A densidade da cena só se compreende quando reconhecemos na figura do enforcado o próprio Judas Iscariotes. O mal fora vencido pela misericórdia.
Essa é a pedra angular de toda a teodiceia (reflexão sobre a existência do mal e a sua ‘conciliação’ com a bondade de Deus) cristã: o mal não é o definitivo; o mal não detém a última palavra, a voz das vítimas do mal é acolhida pelo e no Amor. No palco da história, não se encena um drama em que mal e bem se combatem, mas antes, narra-se a história da superação do limite, condição criatural que a todos atinge, superação que ocorre quando a criação ‘ouve’ e ‘segue’ a voz que chama e atrai…
Imagem de cocoparisienne por Pixabay