Letra viva | Valores de uma cultura que cuida e não mata
Rubrica dedicada à reflexão sobre o dever de cuidar de todos e os riscos de legalizar a eutanásia
João César das Neves*
Por que razão tanta gente pretende hoje usar a lei para matar outros? Esta questão está na ordem do dia, embora não seja referida assim na opinião pública.
Quanto ao facto em si, ele é indiscutível. Portugal assistiu durante várias décadas a uma enorme pressão para liberalizar o aborto, que teve sucesso em 2007, passando a mesma máquina a ser dirigida para a promoção da eutanásia, processo que permanece. Em ambos os casos é indubitável que está em causa a morte de seres humanos, aliás em situações de especial fragilidade: embriões, doentes ou idosos. Por outro lado, é também incontroverso que o tema próprio dessas campanhas é legal, pretendendo-se a permissão, facilitação e até promoção e subsidiação legislativa dessas mortes. Assim a questão candente do momento é mesmo esta: porque se quer usar a lei para matar?
O paradoxo implícito advém de o nosso país se orgulhar de ter sido o primeiro povo europeu a recusar a execução legal de condenados, abolindo a pena de morte em 1852. Como é possível que a sociedade que se adiantou às demais na eliminação da morte legal como castigo, esteja agora ansiosamente a promover a adoção de legislação fatal para pessoas inocentes, muitas delas no início da vida?
Quando encontramos contradições destas, é sempre importante tentar entender as razões do lado oposto. Quem faz isto, para mais de forma tão intensa e apaixonada, tem certamente razões ponderosas. Não são loucos, monstros ou desmiolados a propor medidas tão extremas. O maior drama dos debates contemporâneos sobre questões fraturantes é precisamente eles se transformarem em diálogos de surdos, onde cada lado repete as suas razões sem ouvir mais nada. É fundamental manter um debate civilizado e construtivo, para mais em temas tão decisivos.
O lado que se opõe ao aborto e eutanásia tem uma posição simples e clara: afirma que a lei tem de, antes de mais nada, proteger o direito à vida de todos os cidadãos, não permitindo nunca que alguém a destrua, qualquer que seja o interesse envolvido, exceto se estiver em jogo outra vida, na legítima defesa. O lado oposto promove estas mortes em nome da liberdade. É a liberdade da mulher, do doente, do idoso que é sempre invocada nestas questões.
Claro que todas as pessoas civilizadas estão conscientes que, sendo os dois muitos importantes, o direito à vida é anterior e superior ao direito à liberdade, pois a segunda não pode existir sem a primeira. Existem alguns fanáticos que desafiam este consenso, mas são aberrantes sem real influência. A grande maioria dos participantes, de ambos os lados, concordam que a vida é essencial, pelo menos tão importante quanto a liberdade, também ela indispensável.
Chegamos aqui ao busílis da questão. A defesa do aborto e eutanásia não é sustentável sem um segundo elemento essencial: a negação da humanidade à vítima. Quem defende a liberalização destas práticas implicitamente considera que o embrião ou o doente não têm direitos plenos de cidadania. Assim, a questão que divide está na atribuição de humanidade aos sujeitos. Enquanto um lado acha que se estão a matar crianças ou doentes, o outro diz que se trata de um amontoado de células ou vidas que já não vale a pena viver.
Este ponto é decisivo, porque está sempre por detrás de todos os debates essenciais. Ao longo dos séculos, os defensores da escravatura, racismo, xenofobia, pena de morte, campos de concentração e afins não foram monstros, mas pessoas que negavam a humanidade de negros, judeus, condenados, cristãos e tantos outros. A negação da humanidade é o verdadeiro busílis da questão.