Artigo e foto recolhidos do SNPC
Um homem no deserto do Saara guarda sozinho um “tesouro”. Alguns salteadores sabem-no e, para o roubar, matam-no. Não, não é a ideia para um romance, mas uma história verdadeira. Ocorrida em 1916, na Argélia profunda. E é a história do assassinato de Charles de Foucauld, o “irmão universal”, que em breve será santo. O papa autorizou a Congregação para as Causas dos Santos a promulgar o decreto sobre o milagre atribuído ao beato Carlos de Jesus (é este o seu nome religioso). O “tesouro” que ele guardava, ao ponto de não temer sequer pela sua vida, era Jesus no sacrário.
A partir dessa morte, as vicissitudes humanas e religiosas de Charles de Foucauld fascinaram e atraíram gerações após gerações. De tal maneira que aquilo que não obteve em vida se realizou após o seu nascimento para o Céu. Ao longo dos anos, nada menos que dezanove famílias de leigos, sacerdotes, religiosos e religiosas brotaram da sua espiritualidade e da sua maneira de viver o Evangelho (entre as maiores, as Fraternidades dos Pequenos Irmãos e Pequenas Irmãs de Jesus). Um homem «que deu um testemunho que fez bem à Igreja», afirmou o papa Francisco na missa a que presidiu a 1 de dezembro de 2016, centenário da morte. E Bento XVI, no momento da beatificação, a 13 de novembro de 2005, declarou que a sua vida é «um convite a aspirar à fraternidade universal».
Seguramente a existência terrena de Foucauld tem pontos de grande atualidade, quer na primeira parte, vivida de maneira que não foi exemplar do ponto de vista cristão (mas nisto está em boa companhia de outros santos, Agostinho, por exemplo), quer, sobretudo, após a conversão, que o transformou num dos maiores buscadores de Deus. Ele, grande explorador inclusive do ponto de vista geográfico, dedicou na prática o resto dos seus anos a explorar o imenso território da relação entre o Criador e as criaturas.
Nascido em Estrasburgo a 15 de setembro de 1858 de uma família nobre, e ele próprio detentor do título de visconde de Pontbriand, passa a primeira infância em Wissembourg, mas perde os pais aos seis anos, passando a ser educado pelo avô materno, que lhe deixa uma respeitável herança. O jovem Charles, estroina e superficial, delapida-a em pouco tempo, e em 1876 entra na Escola Militar de Saint Cyr. Singulariza-se mais pelas qualidades de soldado do que de estudante, ao mesmo tempo que se relaciona com uma jovem de duvidosa repurtação. Deixa o exército para se dedicar a expedições geográficas em Marrocos, e dedica-se a estudar árabe e hebraico. Distingue-se como explorador, de tal maneira que em 1885 recebe a medalha de ouro da Sociedade Francesa de Geografia.
No ano seguinte regressa à pátria, e a sua vida tem uma reviravolta decisiva, quanto o futuro santo (que tinha sido batizado em pequeno) sente a necessidade de se reaproximar da Igreja católica. Ficou famosa a sua invocação «meu Deus, se existes, faz com que te conheça». E assim acontece, Deus deixa-se conhecer. Como dirá um dia: «Não só acreditei que houvesse um Deus, compreendi que não podia viver a não ser para Ele». A mutação torna-se cada vez mais radical. Em 1890 entra nos Trapistas, em França, mas depressa pede para retirar-se para uma trapa muito mais pobre, na Síria. Remonta a este período um primeiro projeto de congregação religiosa.
Com 32 anos, Charles sente a necessidade de ser dispensado dos votos, e alguns anos depois o pedido é deferido. Em 1897, a abade-geral dos Trapistas deixa-o livre para seguir a sua vocação. Fica durante algum tempo na Terra Santa. Regressado a França, é ordenado padre em 1901. No mesmo ano transfere-se para África, e estabelece-se num oásis do deserto do Saara profundo. Reveste uma túnica branca, na qual coze um coração de tecido vermelho, sobreposto por uma cruz. Hospeda todos aqueles que passam por ele, cristãos, muçulmanos, judeus, pagãos, e durante 13 anos vive na vila tuaregue de Tamanrasset. Reza onze horas por sai, mergulha no mistério da Eucaristia, redige um grande dicionário de francês-tuaregue, ainda hoje usado naquela região. E, naturalmente, não deixa de se empenhar na defesa das populações locais dos assaltos dos salteadores. E são precisamente eles, no primeiro dia de dezembro de 1916, que tomam à letra a notícia do grande “tesouro” que guarda e de que fala a todos. Por isso, na tentativa de se apoderar dele (não sabendo que se tratava de partículas consagradas durante a missa), saqueiam a sua pobre morada e matam Carlos de Jesus, como se faz chamar pelos habitantes do lugar.
A flor do deserto, cortada, irradia ainda assim as suas esporas à volta do mundo. E a espiritualidade de Charles de Foucauld floresce através da sua família religiosa. Que em breve terá um santo no Paraíso.
«Talvez como poucos outros», Charles «intuiu o alcance da espiritualidade que emana de Nazaré. Este grande explorador abandonou à pressa a carreira militar, fascinado pelo mistério da Sagrada Família, pela relação quotidiana de Jesus com os pais e os vizinhos, pelo trabalho silencioso, pela oração humilde», salientou o papa, em 2015, durante a vigília de oração que antecedeu a abertura do Sínodo dos Bispos sobre “A vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo”.
Charles «percebeu a esterilidade do anseio pela riqueza e pelo poder; com o apostolado da bondade, fez-se tudo para todos; ele, atraído pela vida eremítica, compreendeu que não se cresce no amor de Deus evitando o serviço das relações humanas. Porque é amando os outros que se aprende a amar Deus; é curvando-se sob o próximo que se eleva a Deus. Através da proximidade fraterna e solidária aos mais pobres e abandonados, ele compreende que são precisamente eles que nos evangelizam, ajudando-nos a crescer em humanidade».
Para compreender hoje a família, entremos também nós – como Charles de Foucauld – no mistério da Família de Nazaré, na sua vida escondida, obreira e comum, como é a da maior parte das nossas famílias, com as suas dores e as suas alegrias simples; vida entretecida de serena paciência nas contrariedades, de respeito pela condição de cada um, daquela humildade que liberta e floresce no serviço; vida de fraternidade, que emana do sentir-se parte de um único corpo», apontou.
Nos decretos autorizados hoje por Francisco figuram também os milagres que conduzirão à canonização o beato francês Cesare de Bus (1544-1607), fundador da Confrefação dos Padres da Doutrina Cristã (Doutrinários) e da beata italiana Maria Domenica Mantovani (1862-1934).
Edição: Rui Jorge Martins
Imagem: Charles de Foucauld