Um olhar atento ao tempo que flui
Victor Bandeira*
No mês de Outubro de 1938, o pároco cessante da Paróquia de São Bartolomeu de Veiros, Padre Manuel Marques Capeleiro e Silva, assinava uma “nota” manuscrita, na qual epilogava um documento por ele dactilografado, que dizia ser a transcrição de um conjunto de textos que compilavam o historial da Fundação da Capela do Senhor da Ribeira, de Veiros (Estarreja – Aveiro). Este sacerdote explicava que se tratava de uma “cópia de alguns dizêres extraídos de uma antiga escritura que diz respeito à Capela do Senhor da Ribeira, da Freguesia de Veiros”.
Mas não deixou escrito onde encontrou essa “antiga escritura”, onde se encontrava depositada, nem quem lha tinha facultado. Certo é que, depois de o Padre Manuel Marques Capeleiro e Silva a ter dactilografado, não voltou a ser manuseada, já que, em 1972, o Dr. José Tavares Afonso e Cunha, aquando da publicação das suas “Notas Marinhoas – volume II”, abordou a fundação da Capela do Senhor da Ribeira, apoiando-se neste documento dactilografado, depreendendo-se que já não teria tido acesso à dita “antiga escritura”.
Até ao ano de 2018, aquando da publicação do livro “Memórias da Igreja de São Bartolomeu de Veiros – Chão Sagrado”, também não consegui encontrar o dito documento. Os contactos mantidos com o Arquivo Episcopal do Porto foram infrutíferos nesta matéria, pois da Capela do Senhor da Ribeira, de Veiros, apenas tinham arquivados os “Autos de Património”, os quais foram facultados.
No entanto, 84 anos após o Padre Manuel Marques Capeleiro e Silva ter estado com o manuscrito desaparecido, em mãos, para o dactilografar, o mesmo documento reapareceu à luz do dia no espólio pertencente ao Padre Miguel Henriques (1873-1948, natural de Veiros – Estarreja), corria o mês de Dezembro de 2022.
Este documento (“antiga escritura”), manuscrito nos finais do século XVIII, com 46 páginas bastante deterioradas e incompletas (principalmente) nas últimas três folhas, é iniciado com o relato da primeira visitação efectuada pelo visitador diocesano, em que lhe é contado o aparecimento da imagem de metal do Cristo Crucificado, as características da dita imagem, o modo como foi recolhida e conservada na casa de Isabel, a rapariga solteira que a encontrou. De seguida, narra feitos e curas atribuídos, nos anos seguintes, ao Cristo milagroso, a propagação da devoção, bem como a edificação de uma capela de madeira que o acolheu. São, ainda, referidas as várias visitações consequentes e a forma como a paróquia e os seus padres foram lidando com a ermitoa Isabel, com a afluência de peregrinos, esmolas e ofertas ao longo do tempo, para além da projecção de uma capela maior e mais digna que pudesse agregar toda esta devoção. Seguidamente, expõe-se a escritura da construção da Capela que hoje se encontra no local da Ribeira, com toda a descrição das características e dimensões do templo, terminando com o património doado para a capela.
É curioso que, ao verificar se o Padre Manuel Marques Capeleiro e Silva teria transcrito a totalidade do texto manuscrito dessa “antiga escritura”, constatei que não o fez. Omitiu alguns trechos com pormenores que deve ter entendido não serem interessantes à época, saltou a transcrição de algumas linhas em várias páginas, mas nada de substancial, nem que tenha levado à perda de informação relevante.
Contudo, houve uma informação interessante que não ficou vertida aquando da transcrição dactilografada do texto antigo. Esta informação em falta é referente ao nome da pessoa que representava as religiosas do Mosteiro de Arouca na vila de Estarreja, isto é, quem era o procurador do Real Mosteiro de Arouca na área territorial de Estarreja, durante o ano de 1761, na quinta que o dito Mosteiro detinha no centro da vila. Tratava-se do Padre Frei Pedro d’Araujo: “Reconheço a letra e signaes da Authoridade supra ser tudo feito por mão e letra do Muito Reverendo Padre Frei Pedro d’Araujo Procurador do Real Mosteiro d’Arouca e de prezente assistente na Quinta do dito Real Mosteiro que está nesta Vila d’Estarreja Hoje vinte oito de septembro de mil e sette centos e secenta e hum”. As terras de Antuã e de Avanca estavam atribuídas, por foral do século XIII, ao Real Mosteiro de Arouca, a cujas religiosas as gentes destas terras tinham de pagar os seus tributos, isto é, os direitos aos senhores destas terras, as ditas irmãs religiosas da Ordem de Cister.
O Padre Manuel Marques Capeleiro e Silva termina a transcrição da “antiga escritura”, durante o mês e ano em que deixou as funções de pároco de Veiros, com uma breve nota por si manuscrita acerca da Capela do Senhor da Ribeira:
“Pelo que consta da respectiva escritura, a capela do Senhor da Ribeira teve o seu início em Setembro de 1753; não consta, porém, a data da sua conclusão que, suponho, não seria anterior a 1760.
Foi grande, nos primeiros tempos, a concorrência de fiéis a este santuário; mas, volvido um século, a devoção ao Senhor da Ribeira tinha decaído muito, e em 1880 achava-se quáse extinta.
Quando, em 1905, tomei posse da paróquia, a capela estava completamente abandonada. Os paramentos, toalhas, jarras e mais utensílios do culto, tinham sido retirados para a fábrica da Igreja. A capela permanecia fechada, com as vidraças das janelas partidas, e o telhado, desfeito em parte, era o regalo da passarada, para abrigo no inverno e para os ninhos no verão. Interiormente, era esconderijo de ratos e poleiro de coruja! Tal o deploravel estado em que vim encontrar esta capela, bem digna de melhor sorte. Nem se justificava tal abandono porque a capela tinha patrimonio, com rendimentos suficientes para a despêsa a fazer com a sua conservação e reparação.
Veiros, outubro de 1938.
O Reitor Pe. Manoel Marques Capeleiro e Silva”.
O documento dos Autos de Património da Capela do Senhor da Ribeira, datado de 2 de Outubro de 1761, vem, de certa forma, confirmar a conclusão da construção deste templo, enquanto era pároco o Reverendo Padre José Afonso. O património para a capela é constituído por dois terrenos, o da Ribeira e um nos Telhões (dois lugares de Veiros), doados, perpetuamente, pelos Padres João Marques, da Póvoa (Beduído), e pelo Padre Manuel da Silva, de Veiros.
O manuscrito desaparecido reapareceu quando já não era procurado e quando já se tinha perdido a esperança de o voltar a ver à luz do dia! Mas, porque tal documento estaria entre os pertences pessoais de um sacerdote que nunca chegou a paroquiar Veiros?! Talvez nunca se venha a descobrir! Mas, ao verificar-se a existência de outros documentos no seu espólio, que deveriam constar tombados nos arquivos paroquiais, é legítimo que nos questionemos: teriam os documentos saído da sacristia da igreja aquando do seu incêndio de Novembro de 1855 e sido guardados na residência do sacerdote mais próximo? Mas, porque não terão regressado à origem? Ou esta “antiga escritura” seria uma réplica ou cópia da resenha de documentos originais guardada por algum dos sacerdotes Veirenses?
Por tudo isto, um ensinamento que se pode retirar desta história é que nenhum sacerdote deve levar consigo, para sua casa, para os seus pertences pessoais, a título definitivo, documentos históricos ou que possam vir a tornar-se históricos, e que fazem parte das paróquias onde serve. Um dia, os herdeiros acabam por se desfazer de documentos, fotografias, mobiliário, peças de arte sacra, e tudo quanto já não acharem com valor comercial, ou que se possa transformar em algo valoroso para as suas vidas, perdendo-se informações históricas para as paróquias, património artístico-religioso, entre outros bens que só às paróquias dizem respeito e que fazem parte do seu património cultural, histórico e religioso.
Neste caso específico, a Paróquia de São Bartolomeu de Veiros conseguiu reaver estes manuscritos históricos, porque herdeiros mais conscientes decidiram averiguar, junto da paróquia, se haveria interesse neste espólio. Se não tivesse havido esta consciência, os documentos teriam terminado num qualquer contentor do lixo ou de reciclagem. Quantos documentos já não se terão perdido desta maneira?
Referências
Fontes manuscritas
Affonço, Pe. Joze (1761). Património de Capella. Autos de Patrimonio da Capella do Senhorde Ribra; cita na frga. de Veyros Coma. da Feyra, deste Bpdo. Arquivo Episcopal do Porto.
Capeleiro e Silva, Padre Manoel Marques (1938). Fundação da Capela do Senhor da Ribeira de Veiros.
Referências Bibliográficas
Afonso e Cunha, José Tavares (1972). Notas Marinhoas – Notícias históricas do concelho da Murtosa e das duas freguesias marinhoas do concelho de Estarreja. Volume II. Edição do Autor.
Bandeira V. (2018). Memórias da Igreja de São Bartolomeu de Veiros – Chão Sagrado. Tempo Novo Editora. Aveiro. 461 pp. [ISBN: 978-989-99806-9-3].
Braga J. (2024). Ordem de Cister: Mosteiro de Santa Maria de Arouca: Instrumento de descrição L 794. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Lisboa.
Universidade de Aveiro