GLOSAS – Espaço de comentário a obras que interpelam o tempo presente
Tiago Azevedo Ramalho
– Distinguir para compreender –
– 9. O tema da escolarização. – Embora o tema da educação não tenha sido o objecto dos primeiros escritos de Ivan Illich, foram as reflexões nessa âmbito que o lançaram para certo «estrelato» público (Journey, p. 94).
Tais reflexões são especialmente desenvolvidas na obra Deschooling Society (1970), que reúne compostos na fase do CIDOC (cf. n.º 6). Mas o tema está tratado igualmente em textos avulsos, alguns anteriores ou contemporâneos aos reunidos em Deschooling, como The Futility of Schooling (1968) e School: The Sacred Cow (cf. Awareness, pp. 105-120), outros posteriores, como The Education Sphere (1979) e The History of Homo Educandus (1984) (cf. Past, pp. 105-118). O tema da educação é, por fim, objecto de reflexão retrospectiva nas duas primeiras entrevistas constantes de Conversation, pp. 59 a 104, e em parte da respectiva reflexão constante de Rivers, pp. 139-145. David Cayley considera-o no capítulo 4 de Journey, pp. 94-118.
Escrevi educação, mas devo corrigir para escolarização. De facto, só de um modo mediato incide a reflexão de Ivan Illich sobre o tema da educação. Directamente, a realidade sobre a qual se debruça é a da escolarização (ou a do «sistema educativo»), ou seja, o sistema organizado de práticas destinadas a ministrar uma educação mediante uma instituição específica, a «escola». É certo que a escolarização tem lugar em nome da educação. Mas, como veementemente repete Ivan Illich, as duas podem não coincidir: por um lado, porque a escolarização, mesmo se feita em nome da educação, pode ter resultados contraproducentes ou efeitos secundários indesejados; por outra, pelas muitas formas de educação independentes do sistema escolar.
De entre os muitos propósitos da vigorosa investida de Ivan Illich contra o sistema de escolarização, o fim central parece ser o de cortar essa abusiva identificação entre escolarização e educação, deste modo abrindo o espaço para re-situar o debate acera dos melhores meios de educação. Se, nos termos correntes, o debate sobre a educação é usualmente identificado como tendo por objecto o sistema escolar, Ivan Illich é muito claro na ruptura com uma semelhante identificação, optando por lançar um conjunto de perguntas de grande relevo para ajuizar dos méritos e limitações do sistema escolar. Qual a sua real fisionomia? Como são as escolas? Quais os seus efeitos? O que vai implicado nas respectivas pretensões? Qual a ideia de educação, e de sociedade, que pressupõem, veiculam e realizam?
Deste modo, pode abrir o espaço para o lançamento de novas questões: ante as características das escolas, são possíveis outros modos de educação que não passem por elas? São possíveis modos de participação social que não passem pelo sistema de escolarização?
A resposta que dará é positiva. Daí o título do seu escrito polémico: Desescolarizar a sociedade (Deschooling society), precedido de um outro curto texto, de título bem demonstrativo das intenções com que se dedica ao tema, chamado A futilidade da escola (The futility of schooling).
– 10. Duas distinções. – Impõem-se algumas distinções que balizem o pensamento de Ivan Illich, evitando que se lhe tribute aquilo que o próprio não sustenta ou que lhe é mesmo frontalmente contrário.
Não sustenta, primeiro, qualquer relativização da importância da educação ou do saber – sempre será claro para os seus próximos, aliás, estare m na presença de um «aristocrata» do saber (cf. o que se escreveu no n.º 4).
É certo que um dos possíveis eixos de crítica à «escolarização» poderia assentar no confronto entre natureza e cultura, tida aquela como de índole boa e esta última como corrosiva da inata bondade humana. A «desescolarização» teria assim em vista retirar essas camadas superficiais de cultura que sempre impediriam o espontâneo desenvolvimento da pessoa humana.
Ora, uma tal perspectiva está nos antípodas da reflexão de Ivan Illich. O binómio com o qual trabalha não é o da oposição entre natureza e cultura, mas o do confronto de diferentes formas de cultura. Não opõe o sistema educativo à realidade natural, mas sim diferentes formas de educar, a escolar e as outras – todas elas são, porém, de índole cultural. Para Ivan Illich é claro que a pessoa humana, fruto da sua debilidade, carece de formas de cooperação que lhe permitam desenvolver o que, sem elas, ficará sempre por manifestar-se.
Em segundo lugar, a perspectiva de Ivan Illich está nos antípodas de uma qualquer perspectiva anárquica das relações sociais. A violenta crítica que dirige às instituições modernas não é feita contra a necessidade de instituições, mas em nome de melhores instituições. A respeito do poder, assim dirá numa fase mais avançada da vida: «O poder foi sempre algo que me causou preocupações, não porque o rejeitasse, mas por causa do seu sabor ambíguo.» (Rivers, p. 139)
O próprio, aliás, declarará expressamente nada ter contra a realidade das escolas, mas apenas contra o lugar que ocupam na sociedade, nomeadamente mediante a prescrição da escolaridade mínima obrigatória (Deschooling, p. 68).
Imagem: https://www.sampol.be/2003/01/denken-aan-ivan-illich