Qua. Fev 19th, 2025
CC3H4D Pope John XXIII (1881-1963) Who Reigned As Pope From 1958.

O Rosto da Igreja


Tiago Azevedo Ramalho

 

Foi com surpresa que, ao abrir pela primeira vez o índice da obra Men in Dark Times, da autoria de Hannah Arendt, entretanto traduzida para português (Homens em Tempos Sombrios, Relógio d’Água, 2021), deparei, entre nomes como Lessing, Rosa Luxemburgo, Karl Jaspers, Walter Benjamin ou Bertold Brecht, com uma inesperada referência a Angelo Giuseppe Roncalli: o Papa João XXIII.

Mas mais surpreendente é descobrir o que a motiva. Não, não é o retrato encomiástico da visão do Papa que, pelo Concílio Vaticano II, teria aberto a Igreja ao diálogo com o mundo contemporâneo. Nem sequer, como se poderia supor por aquela companhia, o elogio a um qualquer «cristianismo de vanguarda». O modo como H. Arendt inicia o retrato de Angelo Roncalli fixa o tom da abordagem: pronunciando-se sobre os respectivos diários espirituais (Diário da Alma), afirma que constituem uma obra «estranhamente desapontante», mas, ao mesmo tempo, «estranhamente fascinante».

Estranhamente desapontante: poucas são as referências a acontecimentos do mundo contemporâneo ou aos grandes movimentos da cultura que nela se detectam. Ao que acresce: Roncalli, escreve H. Arendt, nunca terá sido mais do que um aluno medíocre, não se distinguindo especialmente no domínio intelectual. E a cultura em que fora iniciado era fundamental e quase exclusivamente a eclesiástica.

Tudo estranhamente desapontante – mas igualmente fascinante: e fascinante também que H. Arendt, cujos dons intelectuais, por tão abundantes, são de difícil adjectivação, se deixe ela própria fascinar por este homem: «Eis que, no meio do nosso século, este homem decidiu tomar literalmente, e não simbolicamente, cada um dos artigos de fé em que fora ensinado.» Eis que se depara com alguém que se «disciplinou a si próprio e à sua ambição até ao ponto de “nada querer saber das opiniões do mundo, mesmo do mundo eclesiástico”».

Justamente aqui encontra H. Arendt a explicação para a conduta de outro modo tão desconcertante deste João XXIII. Por um lado, a profunda humildade na vida da fé; por outro, o desassombro diante dos homens típico de quem aceitou humildar-se ao serviço somente do Evangelho: «humildade diante de Deus e humildade diante dos homens não são o mesmo». Muitas pequenas histórias ilustram este singular carácter de Roncalli. A seguinte permite especialmente significar a respectiva índole: «Após o início da guerra com a Rússia [no ano de 1941], foi procurado pelo embaixador alemão, Franz von Papen, que lhe pediu que usasse a sua influência em Roma para um apoio explícito da Alemanha pelo Papa.» Era então Roncalli um alto prelado; a Alemanha estava longe de perder a guerra; a União Soviética incarnava uma oposição radical ao cristianismo e, especialmente, à Igreja Católica; e, porventura, von Papen supunha poder dobrar com facilidade este homem que se afigurava tão simples. A resposta: «E o que deverei dizer acerca dos milhões de judeus que os seus concidadãos estão a matar na Polónia e na Alemanha?» Roncalli, sublinha H. Arendt, disse-o em 1941. «É a fé e não a teoria, teológica ou política, que o precaveu diante de “um qualquer modo de conivência com o mal na esperança de que ao fazê-lo pudesse ser útil para alguém”». Um homem que se mantém de pé em tempos sombrios.

Talvez, supõe H. Arendt, o colégio cardinalício não soubesse ao certo quem estava a eleger: «Provavelmente muitos pensavam – no final de contas, ele vivia num meio de intelectuais – que ele era um pouco tonto, não apenas uma pessoa simples, mas limitada. E é improvável que aqueles que observaram durante décadas como ele parecia “nunca ter sentido nenhuma tentação contra a obediência” tenham compreendido o orgulho tremendo e a autoconfiança deste homem que nem por um só momento abdicou do seu julgamento quando obedecia ao que, para ele, não era a vontade dos seus superiores, mas a vontade de Deus».

Parece que ouvimos a Angelo Roncalli as palavras do Apóstolo: «Trazemos este tesouro em vasos de barro, para que se veja que este extraordinário poder é de Deus e não é nosso» (2 Cor 4, 7).

Hoje, dia 11 de Outubro, celebra-se a memória litúrgica de São João XXIII.


Imagem: Papa S. João XXIII (1881 – 1963)