GLOSAS – Espaço de comentário a obras que interpelam o tempo presente
Tiago Azevedo Ramalho
– Marcos da vida de Ivan Illich (cont.) –
– 6. Terceira fase: o «estrelato» intelectual. – «Expulso» de Porto Rico na sequência de um conflito com o episcopado porto-riquenho, a quem publicamente criticara pelo modo como interviera no âmbito de uma campanha política em que procurara evitar que o voto dos eleitores católicos se dirigisse a um possível candidato presidencial (Robert F. Kennedy) favorável à comercialização livre de anticonceptivos (o episódio é narrado em Conversation, pp. 88-89), a vida de Ivan Illich inicia uma nova fase. Estávamos no ano de 1960.
Já do tempo em que fora Vice-Reitor da Universidade Católica e em que tomara parte do Conselho Educativo Nacional de Porto Rico provinha a forte suspeita em relação aos métodos de «escolarização» modernos e ao quadro de valores que pressupõem e realizam (n.º 5). Mas é desta nova fase de «estrelato» intelectual que resultarão as principais reflexões sobre o tema, que depois se expandirão de modo a abarcar outras instituições burocráticas modernas que, na aparência distintas, realizam o mesmo ideário.
Mas não só de reflexão se faz esta fase da vida. Também de acção – e de uma acção que é motor da reflexão. Ivan Illich empenha-se agora na criação de singulares centros de aprendizagem (de «aprendizagem» e não de «ensino», se é lícita a distinção). Após uma experiência prévia de criação de um primeiro centro em Porto Rico e de um conhecimento mais aprofundado de uma América Latina por onde viajara por esses anos – mas também de um retiro de discernimento de 40 dias em Tamanrasset, Argélia, junto dos «Pequenos Irmãos de Jesus» de São Charles de Foucauld –, cria em 1965, na cidade de Cuarnavaca, México, o Centro Intercultural de Documentación (CIDOC). Na aparência tratava-se de um centro de formação de línguas (língua espanhola) e de culturas locais, destinado a formar possíveis «missionários» para o continente norte-americano, num tempo de grande entusiasmo pela ajuda ao desenvolvimento (no plano secular) ou pela missão (no plano religioso).
Mas o CIDOC seguia, conforme o próprio Ivan Illich o confessa, uma (passe o paradoxo) clara agenda oculta: tinha em vista, não propriamente formar, mas deformar o voluntarismo (tantas vezes bem intencionado) de uma ajuda ao desenvolvimento ou de uma missão fortemente ignorante das culturas locais, que, apesar da benignidade dos seus propósitos declarados, pode constituir uma forma de violência exercida sobre as tradições locais. O próprio revelava tratar-se, não sem a usual pitada de provocação, de um «centro de desianquificação» (Journey, p. 55).
A proposta do CIDOC era a de facultar uma forte imersão na cultura local, a ponto de provocar nos respectivos estudantes, pela empatia com a realidade que lhes era dada a conhecer, a clara tomada de consciência do sacrifício implicado na indiferente imposição do quadro institucional próprio das burocracias modernas sob a capa de ajuda ao desenvolvimento ou de missão evangelizadora. Era um centro de especial exigência (Journey, pp. 56-57). Ao mesmo tempo, funcionava igualmente como um centro de conferências, de realização de seminários especializados, promovia certa actividade editorial, gozava de uma biblioteca, etc. Muitos dos textos de Ivan Illich deste período passaram, aliás, pelo crivo da discussão no CIDOC.
Data desta altura o afastamento da Igreja Católica. Pouco após a morte do Cardeal Spellmann (1967), Ivan Illich é chamado a responder perante a Congregação para a Doutrina da Fé. Embora compareça, recusará responder às questões colocadas. Mesmo não sendo objecto de nenhuma condenação formal (de resto, o Anuário Pontifício continuará por longos anos a referir-se a Ivan Illich como «Monsenhor», título eclesiástico que recebera enquanto sacerdote incardinado em Nova Iorque), será lançada uma interdição – revogada em 1969 – de que sacerdotes e religiosos frequentem o CIDOC. É pouco após estes acontecimentos que Ivan Illich renuncia ao exercício de ofícios sacerdotais, ao entender que o protagonismo adquirido e a animosidade em relação em si eram incompatíveis com o adequado exercício do sacerdócio. Até ao fim de vida conservou, porém, a grande frugalidade de vida. Conforme o próprio declara, se não manteve a obediência (institucional), conduziu a sua própria vida em celibato e em pobreza.
Foram estes os anos de maior presença pública de Ivan Illich, mesmo de estrelato: «guru de toda uma geração, figura de proa de toda uma geração» (Clémence Boulouque, Le Figaro, 4/12/2002). O CIDOC constituía um dos pólos efervescentes do pensamento nessas décadas de 60 e 70. Por aí passaram nomes como John Rawls ou Peter L. Berger. Ou ainda Gustavo Gutierrez. Ou mesmo o «nosso» Boaventura de Sousa Santos… Tal lugar era então um «magneto para pensadores independentes», conforme escreve Harvey Cox no seu belo obituário para o National Catholic Reporter (20/12/2002). De resto, ao longo do período está Ivan Illich em contacto com algumas das mais destacas figuras do tempo, no plano eclesiástica (por ex., Dom Hélder Câmara), cultural (por ex., Paulo Freire) ou de ambos (por ex., Jacques Maritain). O CIDOC funcionou até 1976.
Foram esses anos especialmente críticos no plano pessoal e de grande apreensão no plano políticas (é a década em que sai a apocalíptica música This is the end dos The Doors…). Mas foi também um tempo de grandes esperanças, em que as fortes tensões permitiam antever a possibilidade de diferentes equilíbrios sociais. É por isso que neste período Ivan Illich se empenha com todas as forças em dirigir o debate público num sentido diferente daquele que via a desenvolver-se, por isso multiplicando os seus escritos polémicos (a que chama «panfletos») e, durante e depois, as conferências de intervenção nas mais diferentes paragens.
Foto: http://humana.social/as-redes-de-aprendizagem-de-ivan-illich/