Sáb. Out 5th, 2024
As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação

Tiago Azevedo Ramalho

 

[Primeiro texto: aqui.]

-11. Uma questão religiosa?As Novas de França sinalizam, portanto, um dos traços característicos da Europa contemporânea: a sua profunda desconsideração pela vida da pessoa humana num dos estados primeiros do respectivo desenvolvimento, sacrificável em favor de mais fortes, na sua capacidade afirmativa, perspectivas de vida e de realização. Poucos se opõem agora a este estado de coisas; entre os que se opõem, destacam-se, é claro, os que o fazem com motivação religiosa.

Daí uma crítica recorrente: reconhecer a admissibilidade do aborto seria uma exigência de respeito pela pluralidade do espaço público, em especial pela liberdade religiosa na sua dimensão negativa, a liberdade de não ter religião, a liberdade de não ser compelido a ter de reger o respectivo comportamento por um padrão de conduta de índole religiosa. Será crítica procedente?

Para o ponderarmos, tomemos por referência o modo como o tema do aborto é olhado por uma comunidade cristã de profissão católica, sabendo que o que se diga a seu respeito poderá valer, com as necessárias adaptações, para a posição de outras comunidades crentes.

É a matéria do aborto indiferente à vivência da fé cristã? Evidentemente que o não é, e que a sua praxis toma, a respeito daquela matéria, uma posição firme, assumida e repetida. Justamente tal empenho conduz, a olhos de muitos, àquela primeira conclusão: a de que a posição contrária ao aborto é uma «questão religiosa».

Mas é conclusão que ameaça ser precipitada. Não é pelo facto de uma questão merecer o interesse de uma dada comunidade crente que se torna «religiosa» no sentido de impor uma não identificação entre o entendimento política e juridicamente vinculante e o entendimento religioso. Para alguém com certa vivência aprofundada na fé religiosa, não há, em verdade, questões que sejam religiosamente indiferentes, pois toda a vida, em qualquer uma das suas dimensões, é interpretada desde um horizonte de totalidade (mais correctamente: de infinito) por relação ao qual adquire significação.

Tomam muitos posição a respeito do aborto; como se interessam também por questões sociais; ou pela proibição da pena de morte; ou ainda pela ecologia. Mal estaríamos se por estas questões merecerem o interesse da comunidade crente não pudessem merecer igualmente o da comunidade política. Manter que a perspectiva que alguns sustentam a respeito do aborto deva ser proscrita pela sua eventual motivação religiosa levaria, por identidade de razão, a professar um indiferentismo moral também nestes planos social, criminal ou ecológico. Mais: se não há questão humana que seja religiosamente indiferente, então, para se garantir a perfeita separação entre o político e o religioso, o político sobre nada se poderia interessar. É claro que um tal absurdo não pode ser sustentado.

(Continua.)


Imagem de Dan Eva por Pixabay