As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação
Tiago Azevedo Ramalho
[Primeiro texto: aqui.]
-10. Um novo consenso (cont.). – Não que se trate de um fenómeno especificamente francês. Lemos sucessivas resoluções do Parlamento Europeu – que, é certo, valem por regra bem menos, na força jurídica e simbólica, do que um qualquer acto normativo de um Parlamento nacional, mas que não por isso deixam de conformar o horizonte em que se dá a actividade política – e surpreendemos, de modo repetido, o apelo aos «direitos sociais e reprodutivos». Uma busca rápida surpreende, nos últimos anos, tal tipo de referências nas Resoluções de 13 de Fevereiro de 2019 [(2018/2684(RSP)], «Retrocesso em matéria de direitos das mulheres e de igualdade de género na UE»; de 14 de Novembro de 2019 [2019/2891 (RSP)], «Criminalização da educação sexual na Polónia», de 24 de Junho de 2021 [2020/2215(INI)], «Saúde e direitos sexuais e reprodutivos na EU, no contexto da saúde das mulheres»; de 11 de Novembro de 2021 [2021/2925(RSP)], «Primeiro aniversário da proibição de facto do aborto na Polónia»; de 5 de Maio de 2022 [2022/2633(RSP)], «O impacto da guerra contra a Ucrânia nas mulheres»; de 9 de Junho de 2022 [2022/2665(RSP)], «Ameaças globais ao direito ao aborto: eventual revogação do direito ao aborto nos Estados Unidos pelo Supremo Tribunal»; de 7 de Julho de 2022 [2022/2742(RSP)], «Decisão do Supremo Tribunal dos EUA de revogar o direito ao aborto nos Estados Unidos e necessidade de garantir o direito ao aborto e a saúde nas mulheres na EU»; de 22 de Novembro de 2023 [2022/2051(INL), «Propostas do Parlamento Europeu de modificação dos Tratados»; de 18 de Janeiro de 2024 [2023/2028(INI)], «Situação dos direitos fundamentais na União Europeia em 2022 e 2023»; de 28 de Fevereiro de 2024 [2023/2113(INI)], «Relatório sobre o relatório da Comissão sobre o Estado de Direito 2023»; e, finalmente e na sequência da alteração à Constituição francesa, a resolução sobre a «inclusão do direito ao aborto na Carta dos Direitos Fundamentais da UE», votada em Abril último (2024/2655 RSP). Bom seria olhar mais de perto quais os concretos fundamentos arrogados pelo Parlamento Europeu para uma tal abordagem de travo inquisitorial; ou, ainda, de que modo a composição do Parlamento Europeu se foi distribuindo em cada uma das votações. Terá de ficar para melhor oportunidade: por agora basta notar até que ponto o tema se tornou omnipresente, mas desde apenas uma das ópticas pelas quais pode ser tratado. A primeira das resoluções acima citadas, intitulada «Retrocesso em matéria de direitos das mulheres e de igualdade de género na UE», começa com um considerando que mostra bem a perspectiva de «defesa do progresso» desde a qual se dá esta abordagem:
«Considerando que “retrocesso” pode ser definido como uma resistência a uma progressiva mudança social, uma regressão dos direitos adquiridos ou a manutenção de um status quo não igualitário, e que o retrocesso em matéria de direitos das mulheres e de igualdade de género é particularmente preocupante; que essa resistência pode ser exercida independentemente do contexto social ou da idade, pode ter carácter formal ou informal e pode recorrer a estratégias passivas ou activas para contrariar novos progressos, tentando tentar alterar leis ou políticas que, em última instância, limitem os direitos adquiridos dos cidadãos; que este retrocesso tem sido acompanhado da disseminação de notícias falsas e de estereótipos nocivos (…)».
A fórmula «direitos sociais e reprodutivos» é, ainda, amplamente divulgada por agências internacionais que arrogam a si uma expertise não especificamente política, mas técnica. É o caso da Organização Mundial de Saúde ou do Fundo das Nações Unidas para a População. Precisamente tal coloração jurídico-cientificista contribui para que o tema do aborto provocado vá gradualmente conquistando aquela aparência de imparcial neutralidade que caracteriza o discurso objectivador, contribuindo para que uma questão altamente problemática seja privada de disputabilidade. Já não matéria de debate, do espaço político, de decisão pública, mas elemento integrante de um acquis a poder ser transmitido, em âmbito escolar, por via inculcativa.