As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação
Tiago Azevedo Ramalho
[Primeiro texto: aqui.]
-9. A incomunicabilidade de ópticas. – Lemos o acórdão Dobbs vs. Jackson e espanta-nos que tenha sido possível que a posição que nele se sustenta, e que de modo tão claro adere ao modo como pensamos o funcionamento do espaço político no Ocidente, tenha suscitado tamanho brado.
Atinge-se mesmo o nível do absurdo – como no-lo demonstraram as «Novas de França» (n.º 1). Chegaram elas no contexto de alarme público acerca do que poderia ser a colocação em crise do direito ao aborto pela jurisprudência do Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Mas Dobbs vs. Jackson não trouxe nenhum perigo para essa possibilidade, no pressuposto de que ela seja reconhecida pelos órgãos com legitimidade democrática – apenas admitiu que o normal funcionamento dos órgãos legislativos possa também conduzir a diferente resultado. Isto é, inscrever num texto constitucional um possível direito ao aborto é ainda uma perfeita realização do que é consentido (mas não prescrito) por Dobbs vs. Jackson – consente é também no contrário. Mas tal contrário nunca seria de temer num país, como o é França, em que os representantes eleitos parecem em ampla maioria concordar com um tal regime. Em suma: toda a recente acção do legislador constitucional francês teve lugar em quixotesca gesta contra uma posição que se lhe não opõe.
Porquê, pois, aquele tão sonante brado? Justamente por Roe vs. Wade ter conseguido provocar, ao longo das décadas que se lhe seguiram, uma ressignificação do problema do aborto, retirando-lhe o carácter de assunto disputável, porque entendido como no exercício de «direitos humanos» que se antepõem à própria comunidade política, e que, assim, se subtraem à possibilidade de discussão pública. Dobbs vs. Jackson foi por muitos recusado, portanto, porque logrou mostrar, e dever estar aberto, o que muitos supunham ou desejavam já selado.
(Continua.)