Qua. Nov 13th, 2024
As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação

Tiago Azevedo Ramalho

 

[Primeiro texto: aqui.]

 

– 8. De Planned Parenthood vs Casey (1992) até Dobbs vs. Jackson (2022). A lição de Roe vs. Wade veio, posteriormente, a ser confirmada pelo – entre outros – acórdão Planned Parenthood vs Casey (1992). Pese embora certa redefinição do entendimento do Tribunal, abandonando (segundo a mais determinante das posições em que se dividiu o corpo de juízes) o modelo de tripartição dos tempos de gravidez, com diferentes níveis de intervenção consentida estadual consentida em cada um deles (n.º 7), a favor de um critério de distinção entre viabilidade e inviabilidade do feto, e excluindo que, na fase de inviabilidade, pudesse haver restrições ao aborto que constituíssem uma «oneração excessiva» («undue burden»), confirma, no essencial, a lição de Roe vs. Wade: a conclusão de que do texto constitucional decorre a exigência de reconhecimento, em termos amplos, da possibilidade de aborto provocado. Importante é ainda observar como, na sua fundamentação, o Tribunal sustenta que Roe vs. Wade provocou uma mudança no modo de interacção humana que não caberia agora colocar em causa, numa como que interpretação linear e progressivista da história.

Apenas em data mais recente, com o acórdão Dobbs vs. Jackson (2022), se deu finalmente uma inflexão. Contrariamente ao que, nos tempos que imediatamente se seguiram à publicação do aresto, foi amplamente sugerido pelos meios de comunicação, não teve tal acórdão por intuito introduzir nenhuma ruptura de sabor «reaccionário» no Direito norte-americano. Limitou-se, na verdade, a restaurar aquele que fora o modelo de fontes de Direito vigente até Roe vs. Wade e que até hoje vigora no continente europeu, nos termos do qual o regime de resposta ao aborto é matéria passível de regulação legislativa, e que a sua admissibilidade não é imposta por nenhum texto constitucional na interpretação de um corpo selecto e restrito de magistrados judiciais. Aliás, hoje, em 2024, a maioria dos Estados federados norte-americanos continuam a reconhecer com amplíssima latitude a possibilidade de provocação do aborto. Para usarmos os termos altamente partidarizados do discurso norte-americano, Dobbs vs. Jackson não é, sequer, um acórdão pro-life, mas (digamos) pro-politics: quer dizer, de restauração de um espaço para o confronto e deliberação política, resulte ele em soluções pro-life ou pro-choice (teria noutro caso podido ser obtida uma maioria de 6 contra 3?). Vejamos algumas passagens:

«O aborto constitui uma profunda questão moral na qual os americanos sustentam posições fortemente conflituantes. Alguns acreditam com fervor que uma pessoa humana adquire existência na concepção e que o aborto coloca termo a uma vida inocente. Outros sentem com igual intensidade que qualquer regulação do aborto invade o direito da mulher de controlar o seu próprio corpo e obsta a que as mulheres possam atingir total igualdade. Finalmente, outros, num terceiro grupo, julgam que o aborto deve ser permitido sob algumas, mas não todas as circunstâncias, e aqueles que se situam neste grupo sustentam uma diversidade de posições sobre as restrições específicas que devam ser impostas.»

«Roe estava flagrantemente errado e foi profundamente danoso. Pelas razões já explicadas, a análise constitucional de Roe estava fora das fronteiras de qualquer interpretação razoável das várias disposições constitucionais para as quais vagamente apontava.»

«O Tribunal [com Roe vs. Wade] curto-circuitou o processo democrático ao fechá-lo ao grande número de americanos que nalguma medida dissentiam de Roe,»

Finalmente, a notável fórmula conclusiva:

«A Constituição não proíbe os cidadãos de cada Estado de regular ou proibir o aborto. Roe e Casey arrogaram essa autoridade. Nós, agora, afastamos essas decisões e devolvemos tal autoridade ao povo e aos seus representantes eleitos.»

(Continua.)


Imagem de Oliver Zühlke por Pixabay