As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação
Tiago Azevedo Ramalho
– 4. Cont. Antes da «ponderação» de valores. França e Itália. – Houve, houve realmente um tempo anterior à perspectivação da resposta jurídica ao problema do aborto a partir da «ponderação» ou da «concordância prática» entre valores pretensamente equipolentes (ou de clara afirmação da «liberdade» individual) – e em que, bem diferentemente, se estruturava ela em primeira linha desde uma decisiva opção por uma protecção prevalente da vida humana.
Poderia comprovar-se a assunção desta última perspectiva avocando os múltiplos instrumentos legislativos, em diferentes tempos e lugares, pelos quais se proscreviam práticas abortivas. Mas a tais exemplos objectariam alguns: que testemunham uma ordem de normação inteiramente superada ou a superar; e que, por isso, a ordem de valor que lhes subjaz seria tão de eliminar como essas draconianas soluções jurídicas deles constantes.
Ocorre que mesmo textos legislativos despenalizadores com certa amplitude do aborto não abdicavam daquela óptica fundamental – o que prova até que ponto ela realmente se encontrava estabelecida. Mesmo onde se adoptava o critério das primeiras semanas de gestação para despenalizar, com amplitude, a prática do aborto provocado, contudo era claro que a preferência haveria de ser dada à protecção da vida humana. Considerem-se, a título de exemplo, as leis que despenalizaram o aborto em França e em Itália.
Em França: é a célebre Loi Veil, assim intitulada em homenagem à Ministra da Saúde que a promoveu, Simone Veil (trata-se da «Loi 75-17 du 17 janvier 1975 relative à l’interruption volontaire de la grossesse»). É tal lei usualmente apresentada como o marco miliário a assinalar a conclusão de uma das primeiras e mais decisivas etapas no sentido do amplo reconhecimento da possibilidade do aborto. E constitui-o. Contudo, é também clara a sua preocupação de garantir que, mediante um tal reconhecimento, não se colocava em causa a óptica de manifesta prevalência da protecção da vida humana, de não equipolência entre a vida de um ser humano a caminho do respectivo nascimento e de puras decisões arbitrárias a respeito do seu destino. A lei como que pretende prevenir o risco da subversão de todos os valores que poderia decorrer do regime que introduzia.
É o seguinte o teor dos seus dois primeiros artigos:
«Art. 1.º – A lei garante o respeito por todo o ser humano desde o começo da vida. Não se poderá atentar contra este princípio senão em caso de necessidade e de acordo com as condições previstas na presente lei.
Art. 2.º – É suspensa por um período de cinco anos a contar a promulgação da presente lei a aplicação das disposições das quatro primeiras alíneas do art. 317.º do Código Penal quando a interrupção voluntária da gravidez for praticada antes da décima segunda semana num estabelecimento de hospitalização público ou num estabelecimento de hospitalização privada que satisfaça as disposições do artigo L.176 do Código da Saúde Pública.»
A lógica da lei não poderia ser mais clara: começa justamente por reconhecer, não apenas uma genérica e impessoal vida humana, mas um ser humano. Declara que o princípio é a sua protecção integral. E admite a sua frangibilidade apenas em caso de «necessidade» (se um princípio que se queira absoluto pode admitir uma tal excepção é um diferente problema: mas a óptica é certamente aquela que se identificou).
Em Itália: é a Legge 22 maggio 1978, intitulada: «Normas para a tutela social da maternidade e sobre a interrupção voluntária da gravidez». Foi tal diploma que amplamente admitiu, em Itália, a provocação do aborto nos primeiros noventa dias de vida (art. 4.º). Mesmo assim, o respectivo art. 1.º dispunha:
«O Estado garante o direito à procriação consciente e responsável, reconhece o valor social da maternidade e tutela a vida humana desde o seu início.
A interrupção voluntária da gravidez, de que trata a presente lei, não é meio para o controlo dos nascimentos.
O Estado, as regiões e os entes locais, no âmbito das próprias funções e competências promovem e desenvolvem os serviços sócio-sanitários, assim como outras iniciativas necessárias para evitar que o aborto seja usado com o fim de limitação dos nascimentos».
Note-se, de novo, a preocupação em afirmar o aborto provocado como uma excepção a uma regra que impõe, em primeiro lugar, a protecção da vida humana – a preocupação de, apesar de tudo e das fundas fissuras abertas, afirmar uma óptica outra, diferente daquela que inspirou as novas agora provindas de França.
(Continua.)
Imagem de Dan Novac por Pixabay