Ter. Jul 8th, 2025
As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação

Tiago Azevedo Ramalho

– 3. O fim de uma óptica. Embora certamente interessante – sobretudo pelo contraste com as posições de assinalável linearidade que se escutaram por aqueles dias –, à tese de Deckers (cf. o n.º 2) justifica-se fazer uma dupla correcção crítica.

A primeira correcção respeita ao juízo histórico, que nela se patenteia, a respeito da evolução do Direito dos Estados ocidentais.

Segundo Deckers, ter-se-á dado agora uma quebra do equilíbrio em que assentava a regulação do aborto – a tentativa de uma certa concordância prática entre a promoção da «liberdade da mulher» e a protecção «vida intra-uterina». Equilíbrio rompido, segundo o autor, pela recente alteração à Constituição francesa, ainda que apenas consumando um desequilíbrio já desejado (num sentido rigorosamente oposto) pelos movimentos «pró-vida».

É de duvidar, porém, que tenha sido esta a ruptura fundamental na consideração do modo como se responde ética e juridicamente ao problema específico do aborto. A mudança fundamental parece ter sido outra, e na verdade bastante anterior.

O que caracterizava a resposta ética e jurídica ao aborto era a perspectivação do problema por este suscitado, não como pedindo em primeira linha um equilíbrio entre a liberdade da mulher e a vida intra-uterina, mas desde o reconhecimento de que o ponto de partida é a evidente prevalência da protecção do ser humano já existente. Quer dizer: pressupunha-se, à partida, a inexistência de um conflito relevante, pela firme decisão de, primeiro e antes de tudo, proteger a pessoa humana a nascer.

A divergência, que também a havia, estava na determinação de quais as excepções a esta regra fundamental. Somente dentro do círculo de relevância de cada uma destas excepções se permitia a consideração de um possível conflito entre a vontade da mãe em colocar termo à gestação e a vida do ser humano por nascer. Por conseguinte, a admissibilidade do aborto discutia-se sempre na margem, na periferia, na dobra. A óptica, pois, era a de se estar a responder sempre a um mal, e mal absoluto – e não a de uma equidistante e impessoal ponderação de bens equipolentes a ponderar desde um arquimédico ponto de indiferença –, mesmo que, em dadas circunstâncias e por diferentes razões, a lei admitisse que ele tivesse lugar.

Ora: foi justamente essa a óptica que se rompeu.

A segunda correcção respeita à identificação do momento em que se deu essa ruptura. Só com certo abuso se pode ver no activismo norte-americano ou polaco a causa próxima (embora por reacção a ele) destas recentes alterações à Constituição francesa. Pois está ela em plena linha de continuidade com a mudança de óptica a que antes se fez referência, e que teve lugar, na verdade, a partir de uma linha jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal norte-americano que a assumiu plenamente: a linha inaugurada pelo célebre acórdão Roe vs. Wade (1973), que justamente revolveu a óptica consolidada de colocação do problema do aborto, e continuada, embora com modificações, pelo acórdão Planned Parenthood vs. Casey (1992). Foi a essa inflexão que reagiu finalmente o acórdão Dobbs vs. Jackson (2022) – certamente apenas possível em virtude de uma composição do Supremo Tribunal Federal obtida para obter a simpatia de um eleitorado «pró-vida» –, que em parte, e apenas em parte, permitiu a reposição do problema nos termos tradicionais. Foi a este acórdão que reagiu a alteração constitucional francesa? Foi certamente. Mas nele não esteve o princípio da história.

O que agora se disse com brevidade deve ser explicado desenvolvidamente. Primeiro, colocando em evidência qual era a perspectiva consolidada. Depois, identificando com nitidez onde e em que termos se deu esta ruptura fundamental.

(Continua.)


Imagem de ian kelsall por Pixabay