As leis da cidade | Espaço dedicado a textos sobre legislação
Tiago Azevedo Ramalho
– 2. Uma «luta cultural indigna». – Como valorar estas novas chegadas de França?
Logo após a aprovação em Congresso da alteração constitucional (a 4 de Março de 2024), o jornalista alemão Daniel Deckers, nas páginas do Frankfurter Allgemeiner Zeitung, publicou uma interessante reflexão intitulada: «Conflito cultural indigno» («Unwürdiger Kulturkampf»). Serve ela de ponto de partida às presentes reflexões. Por uma dupla razão: quer pelo que nela se encontra de certeiro, quer pelas correcções que se impõem.
O texto abre nos seguintes termos:
«O acolhimento do direito ao aborto na Constituição francesa modifica o cenário legislativo de modo não insignificante. Contudo, seria subvalorizar este passo ver nele apenas um acto de puro significado simbólico. Porque França envia um sinal fatal numa luta cultural que, ora em sentido próprio, ora figurado, apenas se pode qualificar de indigna».
Porquê semelhante «indignidade»? Pela ruptura, escreve Deckers, com o equilíbrio próprio alcançado a partir dos anos 70, que responderia ao problema do aborto mediante uma tentativa de encontrar um compromisso entre a «autodeterminação» das mulheres e o direito à vida da «criança por nascer». Compromisso agora colocado em crise:
«Agora apresenta-se uma França altamente secularizada, literal e figurativamente, à cabeça daquelas forças globais para quem a protecção da vida, com o alto nível de protecção de que gozou nas ordens jurídicas ocidentais marcadas pelo cristianismo, significa entre pouco e nada.»
Não fica o autor por aqui. Igualmente se propõe, na verdade, a encontrar uma explicação para o fim de um tal equilíbrio. Segundo escreve, a causa encontrar-se-á na conduta de «cristãos em países como EUA e a Polónia», na sua intransigência da protecção da vida pré-natal, não consentindo numa qualquer ponderação de direitos. Chegou-se agora finalmente a um regime intransigente – mas, afinal, num sentido inteiramente inverso ao que fora pretendido pelos movimentos de protecção da vida pré-natal.
Em síntese: com esta alteração ao texto constitucional francês ter-se-á rompido um equilíbrio que, apesar de tudo, fora em tempos possível de obter entre os interesses da mulher e os da «protecção da vida intra-uterina» – o que é de lamentar; mas apenas por sobre-reacção a uma postura «reaccionária» que estaria a ganhar terreno.
Reflexão interessante, por certo. Mas não está adquirido que seja inteiramente acertada. Cabe pois apreciá-la.
(Continua.)