Sáb. Mai 24th, 2025
Direto ao contraditório | Uma rubrica dedicada à reflexão crítica sobre as certezas de sociedade tidas como insofismáveis

Tiago Azevedo Ramalho

 

1. A paixão pelos números. – Não sabemos em que momento se iniciou a paixão pelos números. Os números. O fervor de reduzir o todo da realidade a um quantitativo numérico, e, logo a seguir, a pretensão de, mediante uns quantos cálculos, transformar esses mesmos números, de modo a conformar a realidade que fora numericamente encaixotada. Eis que os números se apresentam, portanto, como penhor de uma promessa e objecto de uma esperança. Dêem-me os números!, grita o decisor – o político, o empresarial, qualquer decisor –, apenas neles confiando como amparo para a sua decisão. E se porventura a realidade, rebelde, não reage às operações de soma e de multiplicação, de subtracção e divisão, então é porque os números, ou as operações, estavam errados e carecem de ser corrigidos – já a fé neles depositada, essa, permanece inquebrantável.

Não sabemos em que momento se iniciou a paixão pelos números, mas vemos que, qual fogo devorador, alastra pelos diferentes campos da vida social. Não me refiro ao altos saberes da Matemática, ou da Física, ou da Química, ou de tantos outros semelhantes, que legitimamente se servem com muito proveito da invenção do número. Muito para além de tais domínios, em que o número justamente ocupa posição primeira, é já a vida de todos os dias que vai sendo colonizada pelo fervor da quantificação. Pois quem não vive já para o número? Quem resiste à pressão da febril avaliação quantitativa, que a esta actividade atribui x e àquela y, e em que o futuro de cada um acaba determinado pela fórmula x+y, ou x-y, ou por uma qualquer outra formalização do mesmo estilo? É assim na vida escolar (avaliação periódica, concursos de acesso, concessão de bolsas), profissional (avaliação de desempenho, monitorização de actividade), na vida empresarial (concursos públicos, relatórios de execução, auditorias), mas é assim também na vida mais pessoal (número de seguidores nas redes sociais, de amigos, de visualizações, …). Mas não se inverte, mediante estas práticas omnipresentes, o modo de relação entre o número e a realidade? Já não é o número a ter a pretensão de espelhar de modo fiel a realidade, mas é a realidade que vai ser torturada de modo a conseguir encaixar no número. O número torna-se então ideologia. E também um sem sentido: porque perdida a referência à realidade, os números são apenas isso, números, significante sem significado, forma sem matéria, o vazio.

Não sabemos em que momento se iniciou a paixão pelos números, mas está na origem de uma imensa náusea que assola espécie humana. Há, porém, boas razões para entender que é uma tentação de sempre. N’O Principezinho, obra de dizer simples para meditar sobre alguns eixos centrais das relações humanas, Saint-Exupéry serve-se precisamente da paixão pelos números como um modo de distinção entre a infância e a idade adulta. Onde as crianças usam uma linguagem da ordem das qualidades (a simpatia dos seus amigos, a beleza de uma casa), os adultos preferem uma linguagem da ordem das quantidades (quantos amigos tem, quanto custa a casa). E recordo também que o hagiógrafo coloca o próprio Rei David a ceder à tentação do número, no momento em que aceita realizar um recenseamento (2 Rs 24), com quanto um recenseamento supõe de desejo de domínio, de segurança, de auto-suficiência, de contagem das espingardas disponíveis para realizar os próprios projectos. Há boas razões, portanto, para supor que a tentação de se render aos números é de longa data. Simplesmente, goza ela hoje de meios que lhe permitem expandir-se de modo inédito: por um lado, a possibilidade de recurso a extraordinários processadores de números, os computadores, com uma capacidade de cálculo incomparavelmente superior à da pessoa humana; por outro, a disponibilidade de números e de mais números com os quais se pode fazer cálculos, os chamados dados, que todos os dias são reunidos, etiquetados, arquivados. Tal permite que o império do número todos os dias expanda um pouco mais os seus domínios. Porque há meios técnicos que o permitem? Certamente. Mas muito mais através da confiança idolátrica que cada um, dia após dia, nesse império deposita.

2. Os fora de série. – O problema é o que escapa à linguagem dos números, uma vez que nunca é possível fazer uma tradução perfeita entre duas linguagens diferenciadas. Há sempre uma perda na comunicação, um resíduo de significado que se perde, um resto. Só dentro de uma mesma linguagem uma operação poderá dar resto zero. E obviamente que esse resto será tão maior quão mais diferentes forem as duas linguagens: o português terá maior nível de correspondência com o espanhol do que com o alemão, e com o alemão do que com o chinês; mas o português, o espanhol, o alemão e o chinês, que são linguagens naturais, terão mais correspondências entre si do que com uma linguagem matemática, que é uma linguagem formal. Pensemos na tradução de um poema: com maior ou menor correspondência, pode ser reciprocamente vertido em diferentes línguas naturais (português em espanhol, espanhol em alemão, etc.), mas nunca numa fórmula matemática.

À linguagem do número escapa, com efeito tudo o que é único, tudo o que é incomparável, tudo o que gera ressonância, tudo o que tem rugosidade. Pois o que é único não pode ser introduzido em nenhuma série; e, não o podendo ser, não pode ser qualificado como número de uma série. E isso é o que acontece com cada um de nós: cada pessoa, na sua subjectividade, na sua história, na sua biografia, na sua rede de relações, no seu resto, é fora de série, irredutível a um todo, a uma quantificação. No império da redução da realidade ao número, a pessoa é um resíduo e um resto. Por isso, aquele que supõe ser capaz de reduzir a realidade a uma fórmula numérica, está na verdade a excluir da realidade que afirma espelhar tudo quanto lhe empresta humanidade. Poderá esperar-se alguma humanização de um método de olhar a realidade que ao homem real e incarnado não dá qualquer espaço?

3. O Resto. – Sobra, pois, uma enorme massa de descartados, periferia de uma humanidade metrificada, um Resto. Perante o império do número, é nesse pequeno Resto, ao qual se nega o espaço, que nos situamos, ou pelo menos é aí que se situa o que de afectivo se encontra em nós. Que esperança pode haver ao habitar-se nesse resíduo?

Misteriosamente, o Resto é também uma categoria bíblica que ilumina de esperança o horizonte futuro. É o Resto, e não o Império, que é o destinatário primeiro, predilecto, das promessas salvíficas. Na lição deuteronómica, Israel é escolhido, não por ser o maior, mas o mais pequeno dos povos (Dt 7,7), pois é na fragilidade, sustenta São Paulo, que mais perfeitamente pode reluzir a força salvífica (1 Cor 1, 26-31); e o profeta sublinha que, por maior que seja a opressão, haverá sempre um Resto que sobreviverá e que será princípio de regeneração (Is 4, 3).

Fora do olhar do número, esse Resto ainda assim existe. Vive. Com efeito, germina e cresce enquanto se dá lugar a essas actividades que não parecem contar para coisa nenhuma. É a mãe que se demora a brincar com um filho; ou o homem bom que interrompe os seus afazeres para socorrer um desvalido caído na berma da estrada; ou ainda os velhinhos, que já desistiram de fazer contas, a cuidarem dos seus netos, ou os netos, que ainda não aprenderam a contar, a cuidarem dos seus velhinhos.

Não será a este Resto que se referirá uma das parábolas do Reino, a do grão de mostarda? Esse Resto, resíduo que sobra de um mundo quantificado, é muito pequeno – pequeno por ser pouco o espaço que lhe é reservado, não pelos muitos que o integram. Mas também o é o grão de mostarda, a mais pequena de todas as sementes. Mas é ela que, uma vez germinando e crescendo, está chamada a tornar-se a maior de todas as árvores (Mt 13, 13-30).


Imagem de Jae Rue por Pixabay