Sex. Mar 28th, 2025
‘Subindo o Monte’ – rubrica dedicada ao pensamento e escritos de autores carmelitas
(Parceria com o Carmelo de Cristo Redentor – Aveiro)

Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein) e João da Cruz

José Vicente Rodrigues*

 

1. Estas duas figuras do Carmelo andam a par, mas com as datas trocadas.João da Cruz nasce em 1542; Edith Stein morre em 1942; João da Cruz morre em 1591, Edith nasce em 1891. Como agora somos tão afeiçoados a comemorar centenários, temos que celebrar em 2042 o quinto centenário do nascimento de João da Cruz e o primeiro da morte de Edith; e em 2091 celebrarão o quinto centenário da morte de João da Cruz e o segundo do nascimento de Edith. Alguém chamaria a isto paralelismo antitético: o nascimento de um, a morte da outra; a morte de um, o nascimento da outra.

2. Porém, mais do que pela coincidência de datas, João e Edith estão unidos por outros laços mais fortes. Na vida dos dois impera o triunfo da cruz, não em vão os dois levam no seu apelido religioso no Carmelo a cruz: João da Cruz, Teresa Benedita da Cruz. Parece que João foi baptizado assim pela sua mãe e madrinha Santa Teresa. Edith pede ela própria este nome, como escreve numa carta em 1948: «Devo dizer-lhe que o meu nome de religião trouxe-o já comigo quando cheguei de postulante ao convento. Consegui exactamente o que pedi. Sob a cruz compreendi o destino do povo de Deus, que já então começou previamente a anunciar-se. Pensei que aqueles que compreendessem que isto eraa cruz de Cristo deveriam tomá-la sobre si em nome de todos. Certamente, hoje sei muito melhor o que significa ter-se desposado com o Senhor sob o sinal da cruz. Todavia, nunca se chegará a compreender, porque é um mistério».

3. Quando conheceu Edith pela primeira vez os escritos de João da Cruz? Não sabemos ao certo; os melhores estudiosos acumulam notícias sobre isto. Já em 1932, declara uma testemunha, «disse-me que tinha lido São João da Cruz e que estava profundamente impressionada». Por estes anos parece que fez uma tradução das estrofes do Cântico Espiritual. E já antes, em Novembro de 1927, escrevendo ao filósofo Roman Ingarden diz-lhe que, no seu parecer, «João da Cruz e Teresa de Jesus são os santos mais impressionantes como mestres no caminho da fé para Deus».

4. Depois de entrar no Carmelo de Colónia em 1933 informa que «para a preparação da profissão escolheu como guia o nosso pai João da Cruz, como já fiz para a tomada de hábito». Parece que reflectiu particularmente sobre a Subida do Monte Carmelo e a Noite Escura. Tinha-o escolhido como companheiro de caminho. Estas subidas ao Monte Carmelo parecem-se muito com a subida ao Monte Calvário e a noite escura é imersão profunda na fé. Assim, a partir de João da Cruz, Edith vai decifrando a sua existência de ser destinada e convocada à morte pelo seu povo judeu.

Esta consciência do seu destino singular vem-lhe, como é natural, de dentro, do próprio Cristo, também Ele judeu, e do Espírito Santo, que anima o seu coração. Porém, a doutrina sanjoanina das noites escuras ajuda-a particularmente a entender e a entender-se. Escreve, em 1934, uma breve meditação para se preparar para a festa do santo com o título «Amor à Cruz», ou, com este outro mais completo; a expiação mística.

5. A celebração do Centenário sanjoanino de 1942 oferece a Edith uma ocasião propícia para penetrar na pessoa e na doutrina do Santo de modo mais sistemático. A Prioresa, tendo em vista o Centenário e sabendo das capacidades extraordinárias de Edith encarregou-a já em 1940 de escrever um livro sobre o Santo. Numa carta de Setembro de 1940, escreve: «o meu agradecimento é grande por me ter permitido produzir algo antes que o meu cérebro se ponha totalmente adormecido». Volta a confessar em 1941: «O trabalho de que me ocupo faz-me viver continuamente imersa no pensamento de São João da Cruz».

6. A obra, fruto do seu trabalho e aplicação, dentro do pouco tempo disponível, leva o título de «Ciência da Cruz, estudo sobre São João da Cruz». Não pôde sair à luz pública na data e ocasião prevista. Saiu, pela primeira vez, em alemão, em 1950. A autora já tinha deixado posta a dedicatória: «Ao Doutor Místico, pai dos carmelitas, João da Cruz no 4º centenário do seu nascimento 1542-1942 dedica-o Teresa Benedita da Cruz Carmelita descalça (Edith Stein)». Os acontecimentos cruéis da guerra europeia tiveram a culpa do atraso da publicação do livro que seria póstumo tendo Edith falecido no campo de extermínio de Auschwitz em 1942. Estava a trabalhar na obra quando a prenderam a 2 de Agosto desse mesmo ano.

7. O que a autora procura fazer com esta obra di-lo claramente nas primeiras linhas do livro: «Nas páginas seguintes procuraremos ajudar a compreender João da Cruz na unidade da sua essência, tal como se depreende da sua vida e obras, dum ponto de vista que possibilite perceber totalmente esta unidade. Por isso não se oferecerá nem uma descrição da sua vida, nem uma exposição completa que avalie a sua doutrina. Mas os acontecimentos da sua vida e o conteúdo dos seus escritos terão que ser consultados para alcançar, por meio deles, esta unidade». Já o título da obra indica por onde e a partir de onde se vai alcançar o sentido dessa unidade: a partir da cruz. Explica imediatamente o que entende por ciência da cruz para que o leitor a possa seguir sem tropeços:

«Quando falamos de «ciência da cruz» não há-de entender-se no sentido corrente de “ciência”: não se trata duma simples “teoria”, quer dizer, duma pura relação – verdadeira ou pretendida – de proposições autênticas, nem duma construção ideal com base em pensamentos coerentes. Trata-se duma verdade bem conhecida – uma teologia da cruz –, mas verdade viva, real e operante: como um grão de trigo que, semeado na alma, deita raízes e cresce, e assim dá à alma um selo característico e determina-a nas suas acções e omissões, de tal modo que por elas resplandece e se manifesta. Neste sentido, fala-se duma “ciência dos santos” e nós falamos de ciência da cruz».

8. A citação é longa, mas é como o fio condutor para saber ler o livro. Procura aproximar-nos dos primeiros encontros de João da Cruz com a cruz na sua terra natal, mais adiante, na sua vida de pobre, na sua atenção aos doentes do hospital de Medina, nos seus estudos, mais adiante na Sagrada Escritura, na liturgia, etc. Passa da preparação vital à doutrina do Santo, tendo sempre em conta o sentido da unidade da doutrina com a vida na sua pessoa. O que mais chama a atenção de Edith é o tema das noites escuras sanjoaninas e vibra com essas exigência de morte e ressurreição, de verdadeiro mistério pascal tal como o viveu, experimentou e descreveu João da Cruz. Podemos aqui, sem medo de nos equivocarmos, dar-nos conta de que Edith está como que a projectar a sua própria cruz e as suas noites de encontro com a cruz de Cristo sobre a sua interpretação de São João da Cruz. Esta noite passiva do espírito que o santo qualifica de horrenda Edith viveu-a e soube-a captar instruída pelo seu santo padre João da Cruz.

9. Quando morre no campo de extermínio não se trata só de uma noite passiva do espírito mas também de toda a sua pessoa. João da Cruz fê-la compreender também que a cruz era o caminho da luz e a morte era o caminho da ressurreição. «Não há outro caminho para chegar à união a não ser o da cruz e o da noite, a morte do homem velho». Edith ofereceu-se a Deus em holocausto pelo seu povo; a partir deste oferecimento, lia e relia a João da Cruz e, apelidada como ele da Cruz, deixa esta espécie de testamento: «Uma ciência da cruz só se pode adquirir se se chegar a experimentar a fundo a cruz. Disto estava convencida desde o primeiro momento, e de coração disse: Ave crux, spes unica!»,

10. Edith Stein escreveu muito sobre o seu pai João da Cruz. Falava também muito bem dele. As monjas da sua comunidade deixaram este testemunho: «Deu-nos uma vez uma conferência sobre São João da Cruz e a união com Deus, com uma tranquilidade e um tal conhecimento, que nos impressionaram profundamente, porque se via que eram coisas que ela vivia».

11. Numa carta a Agnella Stadmüller (30/31 de Março de 1940) explica-lhe admiravelmente alguns pontos da doutrina sanjoanina: «Por amor puro entende o nosso santo Padre João o amor de Deus por ele mesmo; o de um coração livre de todo o apego a qualquer coisa criada; a si mesmo e ao resto das criaturas, mas também a toda a consolação e coisas semelhantes que Deus possa conceder à alma, a qualquer forma de devoção especial, etc., o de um coração que não deseja outra coisa senão que se cumpra a vontade de Deus e que se deixa guiar por ele sem resistência. O que podemos fazer para chegar até aqui está longamente tratado na Subida do Monte Carmelo. Como Deus purifica a alma, na Noite Escura. O resultado, na Chama de Amor viva e no Cântico Espiritual. Pode encontrar-se fundamentalmente todo o caminho espiritual em cada uma das obras, só que em cada caso se acentua um etapa ou outra».

A seguir, diz à sua destinatária: «Mas se desejar aprender o essencial de São João da Cruz, compilado de forma muito mais breve do que nas suas grandes obras, então deve tomar os “escritos breves”». Conselho acertadíssimo este último.

12. Final

Teria sido uma felicidade para Edith ter-se encontrado com João da Cruz como se encontrou a Madre Teresa. E teria sido também para João da Cruz uma grande alegria ter-se encontrado em vida com uma discípula como ela, de grandíssima cabeça e de grandíssimo coração, que viveu em plenitude o amor puro ao qual a exortava João da Cruz. A vida e os escritos desta grande mulher contribuem também para uma maior projecção dos escritos de frei João.

* Vicente Rodrigues. 100 Fichas sobre S. João da Cruz. Edições Carmelo, Avessadas. Pp. 126 -129.


Imagem: Edith Stein