Sex. Mar 28th, 2025
‘Subindo o Monte’ – rubrica dedicada ao pensamento e escritos de autores carmelitas
(Parceria com o Carmelo de Cristo Redentor – Aveiro)

Teresa de Lisieux e João da Cruz

José Vicente Rodrigues*

1. Maria da Trindade, noviça de Teresa de Lisieux, referiu nas suas notas: «Muitas vezes, ela (Teresa) tinha-me expressado o seu desejo de que o nosso Padre São João da Cruz fosse declarado doutor da Igreja para acreditar aos seus escritos e para o bem de um maior número de almas. Estou convencida de que ela, desde o céu, trabalhou por este feliz e glorioso resultado que enche de alegria a todos os filhos do Carmelo».

Não é de estranhar que, de facto, a santa manifestasse este seu desejo, pois poderia estar ao corrente dos trâmites que já então se faziam neste sentido.

  1. Citações dos escritos sanjoaninos

Na última edição francesa das Obras Completas de Teresa anotam-se pontualmente os lugares em que aparecem o nome e os escritos de João da Cruz, e dão-se as citações correspondentes. Cita o Cântico umas 50 vezes; a Chama, 16 vezes; a Noite, 3 vezes; poemas: Sem arrimo e com arrimo, 4 vezes; Após um amoroso lance, uma vez; «Ditos de Luz e Amor», 13 vezes; o Epistolário, 5 vezes.

A primeira vez que cita o santo é numa carta a sua irmã Celina de 18 de Julho de 1890. Transcreve-lhe numa folha uns textos do profeta Isaías, do Apocalipse, do Cântico dos Cânticos e termina copiando a estrofe oitava do poema Numa noite escura.

  1. Declaração fundamental de Teresa

Há que lembrar a declaração fundamental da própria santa: «Ah! quantas luzes não extraí das obras do Nosso Pai S. João da Cruz!… Na idade de 17 e 18 anos, não tinha outro alimento espiritual». Deve ao Santo luzes e alimento espiritual.

Os 17 e 18 anos de Teresa, em que andava mergulhada na leitura do Santo, coincidem com as festas do terceiro centenário da morte de frei João. Sabemos até quem pregou o tríduo em honra do santo no mosteiro de Lisieux. Maria dos Anjos, sua mestra de noviças declara no Processo Apostólico: «ela – Teresa – amava acima de tudo o santo Evangelho, os livros dos Santos, o Cânticos dos Cânticos, as Obras de São João da Cruz. Um dia, não sei se ela teria 17 anos, falou-me de certas passagens da mística do Santo com uma compreensão – inteligência – tão superior à sua idade que fiquei completamente admirada».

4.Outra confissão pessoal: «Mas mais tarde todos os livros me deixaram na aridez, e estou ainda neste estado. Se abro um livro escrito por um autor espiritual (mesmo o mais belo, o mais comovedor), sinto logo oprimir-se-me o coração, e leio, por assim dizer, sem compreender; e, se compreendo, o meu entendimento para, sem poder meditar… Nesta impotência, a Sagrada Escritura e a Imitação vêm em meu auxílio. Encontro nelas um alimento sólido e muito puro. Mas é sobretudo o Evangelho que me vale durante as minhas orações. Nele encontro tudo o que é necessário à minha pobre alminha. Nele descubro sempre novas luzes, sentidos escondidos e misteriosos…» (Ms A 83 v).

Pergunta:

João da Cruz deixou de iluminar e alimentar a Teresa de Lisieux as partir dos seus 18 anos? A resposta é clara, conforme as declarações das suas irmãs de comunidade: continuou a iluminá-la e a ser o seu mestre, embora lesse, como fazia o próprio João da Cruz, sobretudo a Sagrada Escritura, especialmente os evangelhos.

  1. Significado dos textos sanjoaninos na vida e doutrina de Teresa

Relendo as obras de Teresa podemos ver como João da Cruz foi o seu alimento, isto é, podemos ver como assimilou os seus ensinamentos e como aplicava a si mesma com consciência reflexa passagens e doutrinas do Santo. E como por meio da linguagem sanjoanina – dos seus textos – exprime as suas experiências e nos aproxima do que acontecia na sua alma.

Podemos aduzir muitos exemplos. Mas bastam alguns:

Bebi do meu Amado na adega interior: Pouco antes da mencionada confissão pessoal sobre a sua leitura dos livros do Santo, disse: «Agora apenas me guia o abandono. Não tenho nenhuma outra bússola!… Não posso pedir mais nada com ardor, excepto o cumprimento perfeito da vontade de Deus sobre a minha alma, sem que as criaturas possam pôr obstáculos. Posso dizer estas palavras do Cântico Espiritual do N. Pai S. João da Cruz: «Bebi do meu Amado na adega interior».

É muito dizer que tudo isto se realizou na sua alma, se pensarmos que o Santo dedica estas duas canções já a cantar a vida da alma chegada à mais alta perfeição. Teresa escreve isto uns meses depois de se ter oferecido ao Amor Misericordioso em 1895.

Este tipo de alegações de uma passagem e o consequente comentário personalizado fazem ver uma vez mais que se serve do Santo para fazer uma leitura da sua alma, e desde essa leitura entende e enriquece o próprio texto sanjoanino.

  1. Sem outra luz nem guia excepto a que no coração ardia: Pouco mais à frente, ao falar dos seus catorze anos, enaltece-se dizendo que se os sábios lhe perguntassem, «sem dúvida teriam ficado admirados ao ver uma criança de catorze anos compreender os segredos da perfeição, segredos que toda a sua ciência lhes não pode descobrir, pois para os possuir é preciso ser pobre de espírito». Nesta altura, explica a sua posição: «Como diz S. João da Cruz: Sem outra luz nem guia excepto a que no coração ardia.

Um pouquinho de puro amor. No mesmo contexto do seu grande discernimento vocacional e eclesial, reaparecem as palavras de João da Cruz. Teresa escreve: «Ó meu Jesus! eu amo-Te! Amo a Igreja, minha Mãe. Sei que «o mais pequeno acto de puro amor lhe é mais útil que todas as outras obras juntas», que não é senão a citação da famosa e polémica canção 29 de CB: «Um pouquinho de puro amor… faz mais proveito à Igreja, embora pareça não fazer nada, que todas as demais obras juntas» (n. 2).

As palavras do Santo são para ela luz, alimento, estímulo, inspiração, e confirmam-na na sua verdadeira vocação apostólica e missionária, nas suas convicções do valor da oração e do sacrifício, etc., mas também lhe trazem interrogações e inquietações sadias e humildes.

  1. Quanto mais quereis dar, mais fazeis desejar…

Se noutra passagem sanjoanina «o amor não se paga senão de si mesmo, com amor» encerrou Teresa o seu ideal de vida ou o ideal da sua empresa como usavam os antigos cavaleiros nas juntas e torneios, de modo parecido no Acto de Oferecimento ao Amor Misericordioso surge uma sentença de João da Cruz de grande alcance ou ressonância no espírito do oferecimento. «Bem sei, ó meu Deus, quanto mais quereis dar, mais fazeis desejar». O texto sanjoanino é da Carta de 8 de Julho de 1589 a Leonor de São Gabriel. Ali podemos ler: «Sua Majestade fê-lo para seu maior proveito; porque, quanto mais quer dar, tanto mais faz desejar, até nos deixar vazios para nos encher de bens».

Meu Amado, as montanhas… Escrevendo a Celina em 1892, diz-lhe: «Celina, as vastas solidões, os horizontes encantadores que se abrem diante de ti devem dizer-te muitas coisas à alma? Eu não vejo nada disso, mas digo com S. João da Cruz: «Tenho no meu Amado, as montanhas, os vales solitários, nemorosos, etc.» (CB 14-15)… E este Bem-amado ensina a minha alma, fala-lhe no silêncio, nas trevas…».

  1. «Oração de alma enamorada»… Escreve a Celina em Outubro de 1892: «Jesus pôs por assim dizer todas as coisas sob os nossos pés. Então podíamos dizer com S. João da Cruz: “Tudo é meu, tudo é para mim, a terra é minha, os céus são meus, Deus é meu e a Mãe do meu Deus é minha”».
  2. Chamadas nas obras do Santo: sublinhados, cruzinhas…

Temos de alegar aqui o testemunho de um mudo, mas muito eloquente testemunho que esteve presente junto da cabeceira de Teresa na sua última doença. Refiro-me à tradução francesa das Obras do Santo; ao volume do Cântico Espiritual e da Chama de Amor viva; publicado em 1875; dois tomos reunidos ou encadernados num só. Este volume contém umas cruzinhas aqui e ali pelas quais podemos rastrear a alma sanjoanina de Teresa durante esses meses.

Celina escreveu a lápis na capa do livro: «Os sinais deste livro e as cruzinhas foram postas pela irmã Teresa do Menino Jesus durante a sua última doença».

A Madre Inês fala também destas cruzinhas: «… como lhe falasse do seu desejo de morrer de amor, perguntando-lhe como saberíamos que tinha amado a Deus “até morrer”, ela assinalou com uma cruzinha, a lápis, no livro esta passagem do mesmo autor (de São João da Cruz), referente às almas consumadas no amor perfeito»: «… morrem com ímpetos e encontros saborosos de amor, etc.».

As três passagens de Chama delimitadas com cruzinhas referem-se à primeira canção no comentário ao verso: rompe a tela deste doce encontro.

Testemunhas mudas, mas muito eloquentes, estes textos que falam da morte de amor, do caminho para chegar em breve a esse estilo ou tipo de morte, etc., e da razão da alma enamorada querer essa pressa e essa ruptura.

Registo de bristol: Além das cruzinhas indicadas temos para detectar as predilecções de Teresa por certas passagens do Cântico Espiritual as indicações escritas num registo de bristol (espécie de cartolina acetinada) pela mesma santa doente. A sua irmã indica como «elas testemunham as outras leituras de Teresa. Reconhece-se facilmente a escrita tremida, típica do período da enfermaria, traçada a lápis. Teresa tinha certamente bom tino para acertar com o melhor do santo.

  1. Todos os textos sanjoaninos citados (e omitimos mutos outros) e comentados por Teresa de Lisieux dizem bem claro e bem alto da proximidade da discípula ao seu mestre e dos benefícios que tal proximidade acima do tempo e do espaço lhe proporcionou. Dizem também como as palavras do Santo lhe servem para conseguir ler a sua própria alma: os seus sentimentos, os seus desejos, as suas vivências ou experiências espirituais. É o seu testemunho pessoal directo.
  2. Testemunhos alheios

O testemunho nascido das próprias obras de Santa é reforçado e enriquecido pelas declarações daquelas que a acompanharam mais de perto e a conheceram bem e podem certificar como ninguém sobre esta relação afectuosa e afectiva e espiritual de Teresa de Lisieux com o seu pai e mestre e guia João da Cruz.

Celina declara no Processo Ordinário: «amava muito a São João da Cruz, porque tinha saboreado particularmente as suas obras». E no Processo Apostólico especifica: No Carmelo aprendeu a gostar as obras de São João da Cruz, as quais gostou particularmente».

E, ao contar coisas, recorda: «… ao chegar ao mosteiro – Celina entrou no convento a 14 de Setembro de 1894 – fui testemunha do seu entusiasmo quando parava diante do gráfico da SUBIDA DO MONTE CARMELO do nosso santo padre João da Cruz, e fazia-me reparar na linha na qual ele tinha escrito: “aqui não há caminho, porque para o justo não há lei”. E, por causa da sua emoção, faltava-lhe o ânimo para traduzir a sua felicidade. Esta sentença ajudou-a muito a tornar-se independente nas suas explorações do amor puro, que muitos rotulavam de presunção. O seu atrevimento chegou até procurar e encontrar um caminho completamente novo, o da infância espiritual; o qual é tão direito e breve que deixa de ser caminho, pois vai parar de um só golpe ao coração mesmo de Deus. Creio que toda a sua oração se encaminhava a procurar a «ciência do amor».

Maria da Trindade, a noviça predilecta de Teresa de Lisieux não acaba de contar coisas. Entre outras recorda:

«Teresa do Menino Jesus tinha um amor particularíssimo ao nosso pai São João da Cruz, amor cheio de reconhecimento pelo bem, a força e o ânimo tirados dos seus escritos. Gostava de falar disto comigo e citava-me de memória as passagens que mais a tinham impressionado».

«Teresa alimentava um afecto filial para com a nossa Madre Santa Teresa e o nosso pai São João da Cruz. Sobretudo as obras deste último a inflamavam de amor».

«As Obras do Santo tinham-na encandilado; recitava de memória longas passagens do Cântico Espiritual e da Chama de amor viva, e dizia-me, que no momento das suas grandes provações, estas obras a tinham reconfortado e lhe tinham feito um grande bem».

«Este é o santo por excelência do amor», dizia-me. E, de facto, não via nos seus escritos senão a sua doutrina do amor levada até ao grau mais sublime, enquanto tantas almas ficam bloqueadas nas suas renúncias e na morte à natureza e se assustam de tudo isto. Na realidade, o «caminhito» de Santa Teresa do Menino Jesus não é senão o caminho «estreito» e há que tornar-se muito pequenos para entrar por ele». Um dia disse-me: “o único meio para fazer rápidos progressos no caminho do amor, é permanecer sempre pequena em tudo. Assim eu agora canto com N. P. São João da Cruz: Abati-me tanto, tanto, etc.

Maria da Trindade pintou, em 1895, para a ermida do Santo, e para a sua festa de 24 de Novembro, em papel especial o desenho do Monte. Teresa «mostrou-me toda a sua satisfação por isto e chamou a minha atenção para estas duas sentenças que lhe eram muito queridas: «quando com próprio amor não o quis / deu-se-me tudo sem ir atrás disso» e «já por aqui não há caminho, pois para o justo não há lei».

«Do Cântico Espiritual gostava de me citar as canções: quanto tu meolhavas… (CB 32); não queiras desprezar-me... (CB 33) e gozemo-nos, amado... (CB 36).

«Mas ver-me-ia obrigada a citar demasiado; não consigo reproduzir aquele seu acento penetrante, sublinhando que a sua pequena via – o seu caminhito – de humildade e de amor não era senão a senda do nosso santo Padre João da Cruz; o nosso nada, o tudo de Deus».

Maria da Trindade conta também o seguinte: Perguntei uma vez à irmã Teresa: “quem vos ensinou a vossa “pequena via do amor” que dilata tanto o coração? Respondeu-me: Foi só Jesus que me instruiu, nenhum livro, nenhum teólogo mo ensinou… Quando se apresentou a ocasião de abrir a minha alma, fui tão pouco compreendida que disse a Deus como São João da Cruz: «Não queiras enviar-me / de hoje mais mensageiro / que não sabem dizer-me o que quero».

  1. Fisionomia e discipulado sanjoaninos de Teresa

Escutadas as referências sanjoaninas que se encontram nos escritos de Teresa e conhecidos alguns testemunhos alheios que falam do tema, realçamos alguns dados:

De tudo o que foi dito até aqui, emerge clara e nítida a fisionomia sanjoanina de Teresa de Lisieux. Os textos de João da Cruz alegados por ele certificam-no; e o seu valor aumenta e acrescenta se se considerarmos os pontos estratégicos em que são alegados, a zona ou âmbito cronológico a que se referem e muito mais, sem dúvida, o espaço interior que recobrem ou as vivências que revelam, os novos horizontes teologais que desenvolvem, a confiança e o amor que evangelizam no meio de uma pressão ambiental jansenista e rigorista imperante.

Essas páginas são palavra repleta de sanjoanismo, isto é, incluem em si mais sentido que aquele que manifestam e se entregam ao discurso daquele que ouve ou lê inteligentemente.

A estes contributos afirmados por ela juntam-se os testemunhos daqueles que a conheceram e se aperceberam da sua profunda vinculação com a pessoa e os escritos de João da Cruz.

Sendo tudo isto tão certo e tão importante, creio que o mais interessante e chamativo em Teresa é a impregnação que tinha do sanjoanismo, e que transcendia de toda a sua pessoa. Exalava sanjoanismo; cheirava a João da Cruz.

Se a sua fisionomia é sanjoanina, o seu discipulado, o seu ser discípula, não o é menos. Basta recordar alguns extremos. Celina diz no Processo ordinário: «A serva de Deus nunca teve propriamente falando um director espiritual». Perante esta afirmação perguntavam-lhe os do tribunal: “abstinha-se a Serva de Deus intencionadamente de consultar os directores espirituais?” E Celina responde: ‘Não, sempre que vinham ao Carmelo pregadores de retiros ou confessores extraordinários, solicitava longamente os seus conselhos; mas Nosso Senhor permitiu que só raras vezes encontrasse neles as luzes que buscava». Para ela, sem dúvida, dos principais directores ou ajudantes do grande Director que tinha em Cristo foi para Teresa João da Cruz com as suas obras e por meio da empatia que reinava entre ela e frei João.

É evidente que Teresa não se contenta com a citação erudita de João da Cruz, mas as suas palavras servem-lhe de veículo para nos transmitir as suas vivências espirituais. É uma boa leitora de João da Cruz que assim e deste modo faz a sua releitura e aplica a si mesma aquela doutrina.

Nas categorias de santos que estabelece nas primeiras páginas da História de uma alma aparece a dos «santos doutores, que iluminaram a Igreja com a luz da sua doutrina». Para ela a luz da doutrina de frei João da Cruz foi cem por cento enriquecedora.

  1. Final:

Teresa de Lisieux, consanguínea espiritual de João da Cruz, com a mesma vocação no Carmelo, é um dos melhores expoentes da sobrevivência do doutor místico na Igreja. E ao ser ela mesma declarada Doutora da Igreja relançava novamente o doutoramento de João da Cruz, dada a influência do Santo na sua alma, na sua mente, na eminência da sua doutrina.

*José Vicente Rodrigues. 100 Fichas sobre S. João da Cruz. Edições Carmelo, Avessadas. Pp. 117 -122.


Imagem: Teresa de Lisieux