Qua. Mar 19th, 2025
‘Subindo o Monte’ – rubrica dedicada ao pensamento e escritos de autores carmelitas
(Parceria com o Carmelo de Cristo Redentor – Aveiro)

ROMANCE SOBRE O EVANGELHO “IN PRINCIPIO ERAT VERBUM” ACERCA DA SANTÍSSIMA TRINDADE

José Vicente Rodrigues*

  1. Refere-se ao evangelho do final da Missa em que se recitava o prólogo do evangelho de São João.

Esta poesia, de 310 versos, a mais longa de todo o repertório sanjoanino, foi composta e transcrita no cárcere de Toledo, enquanto o autor se encontrava vivamente desolado por tantas coisas. Este romance deve ser considerado como o prólogo geral de todas as Obras de São João da Cruz, qualificadas já desde 22 de Dezembro de 1627 de evangelho diluído (BMC 14, p. 376: declaração de Alonso da Mãe de Deus). É como o prólogo de João Evangelista transladado e comentado nestes versos cheios de simplicidade e repletos de inocência literária quanto à forma, exigida pelo pequeno romance popular castelhano. Versos cheios também de profundidade quanto ao conteúdo dogmático-bíblico-espiritual. E parece-nos respirar neles denso ar litúrgico.

  1. 2. A monotonia, que pode pesar sobre o leitor, pelo facto da metade dos 310 versos, isto é, 155, terminar em ia: agonia, afligia, alegria, gozaria, valia, dizia, etc., etc., salva-se, e até se lhe perdoa, pelo conteúdo. Relativamente ao ar litúrgico, convém lembrar que «passou no seu pequeno cárcere» todo o tempo de Advento, o tempo de Natal, o que hoje chamamos primeira parte do tempo comum até à Quaresma, o tempo de Quaresma, a Semana Santa, o tempo pascal, a cinquentena pascal, a segunda parte do tempo comum depois do Pentecostes com solenidades tão importantes como o Corpus, a Santíssima Trindade, a Assunção da Virgem. Esta referência litúrgica vale para este romance como para o seguinte poema que comentaremos: que bem sei eu a fonte

Anotações

  1. No romance não fala de todos os temas do prólogo do quarto evangelho. Por exemplo, nada diz de João Baptista. Não se limita só ao mencionado prólogo, toma alguns pontos do evangelho de São Lucas.

João da Cruz dá-nos uma visão universal do desígnio da salvação, dimensão geográfica e histórica, cósmica e espiritual. Apresenta o plano: o Pai com o pleno consentimento do Filho no Espírito Santo. No primeiro romance realça várias ideias:

A morada e a vida do Verbo em Deus-Pai e posse da sua felicidade n’Ele; a divindade e eternidade do Verbo: Filho desde sempre e para sempre; consubstancial ao Pai, a glória do Filho é a mesma do Pai, o Pai possui a sua glória no Filho. Portanto, glória recíproca; como o amado no amante / um no outro residia, / e aquele amor que os une / no mesmo coincidia/ e com um e com o outro / em igualdade e valia. «Aquele amor que os une» é o Espírito Santo, cuja igualdade com o Pai e o Filho se confessa. As três Pessoas têm o mesmo ser divino: que é o amor e cada uma delas ama a que tem este ser. Importa sublinhar a seguir o rumo seguido pelo Santo: o ser, a essência de Deus, do Deus tripessoal é o Amor. «O amor, quanto mais uno, / tanto mais amor fazia: esta frase final do primeiro romance aplicada agora a Deus, aplicá-la-á depois como uma espécie de princípio intocável na união mística.

  1. No segundo romance apresenta a comunicação das Três Pessoas como um diálogo entre o Pai e o Filho estabelecido no Espírito Santo, amor imenso que procede do Pai e do Filho.

Uma das conclusões deste diálogo, e de suma importância para a vida espiritual do cristão é esta: o Pai não ama senão quem for semelhante ao Filho; e o Pai dar-se-á a si mesmo e o Espírito Santo a quem amar o Filho tão amado pelo Pai.

  1. No terceiro romance – da criação –, prosseguem as palavras do Pai que dá a conhecer ao Filho que lhe quer dar uma Esposa que mereça gozar da companhia da Santíssima Trindade e comer do mesmo pão e sentar-se à mesma mesa e na eternidade chegue a conhecer os bens que o Pai tem no Filho e se compraza com o Pai e se alegre com a graça e louçania do Filho.

Cala-se o Pai e fala o Filho dando graças ao Pai pelos desejos manifestados e promete dar à Esposa a sua claridade para ela conhecer por esta claridade quem é, o que vale o Pai, e conclui: «recliná-la-ei no meu braço / e no teu amor se abrasaria, / e com eterno deleite / tua bondade sublimaria».

Tudo o que antecede, são planos comuns projectados por Deus e, obtido o fiat, o consentimento alegre e total do Filho, passa-se à realização.

  1. No quarto romance atribui a criação ao Pai que pronuncia o Fiat=Faça-se. O mundo, criado com esta única palavra eficaz que traduz a vontade não menos cheia de eficácia, é o palácio para a esposa, feito com grande sabedoria e dividido em dois aposentos: o alto é o céu, o baixo é a terra.

No alto, no céu, coloca os anjos; em baixo, na terra, coloca os homens. Anjos e homens são o corpo da esposa que dizia. Por quê? Porque o amor de um mesmo Esposo (= do Verbo-Filho de Deus) uma esposa os fazia.

Como possuem os anjos o Esposo? Em alegria.

E como O possuem os homens? Em esperança de fé que lhes infundia (= fé esperançada): posta na vinda do Esposo, na Encarnação do Verbo que trará consigo: o engrandecimento do homem; o levantamento e enobrecimento da natureza humana e de todo o cosmos.

  1. No mesmo quarto romance há a realçar a sua riquíssima visão sintética de toda a realidade eclesial: fala claramente da índole escatológica da Igreja e junta estes dois símbolos:

A Igreja-Esposa; a Igreja-Corpo místico de Cristo Esposo e Cabeça.

Nos quatro primeiros romances a Igreja aparece a surgir e nascer da Trindade e a voltar a ela, isto é, Deus Pai, Filho e Espírito é a fonte e a meta. É manancial de todo o plano salvífico, de modo que a Igreja é realmente «o povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo» (= de unitate Patris et Filii et Spiritus Sancti» (LG 4) e é o mar imenso no qual desemboca, sublimando com eterno deleite a bondade divina.

  1. Nos romances quinto e sexto recolhe com fortes tonalidades bíblicas os suspiros, as ânsias, as orações dos patriarcas e dos profetas que pedem ao céu o Messias prometido; no sétimo fica bem claro, através do diálogo entre o Pai e o Filho, no Espírito Santo, que o Filho, em total acordo com o Pai, encarnará e acampará entre os homens: tornando-se homem sem deixar de ser Deus, será a grande epifania de Deus, o revelador e revelação do Pai, o seu evangelizador e evangelho, e redentor dos homens.
  2. Nos romances oitavo e nono fala-se, respectivamente, com ar de cântico de Natal, da Anunciação e do Nascimento. Falaremos mais à frente deste dois últimos romances ao abordar do tema mariano.
  3. Com estas brevíssimas notas já se vislumbra essa espécie de história da salvação, narrada em grandes traços por João da Cruz, tomando-a desde o mais alto e mais profundo de Deus (aqui alto e profundo, profundo e alto é o mesmo), ao gosto do doutor místico.

Assim meditou no seu cárcere de Toledo e assim nos transmitiu o que eu chamaria – meditatio pauperis in solitudine –, meditação, contemplação do pobre na solidão.


*Vicente Rodrigues. 100 Fichas sobre S. João da Cruz. Edições Carmelo, Avessadas. Pp. 194 -197.


Adoração da Santíssima Trindade | Albrecht Dürer [1471-1528], no Kunsthistorisches Museum.