Qui. Abr 18th, 2024

Sinais dos Tempos

Rubrica dedicada à reflexão sobre os desafios que a pandemia de COVID-19 coloca à Igreja e ao mundo

‘Covid-19:
– Que ‘mundo’ e que ‘Igreja’ estão em ocaso?
– Que ‘mundo’ e que ‘Igreja’ se vislumbram na (estão em) aurora?’

João Manuel Duque*

Antes de responder diretamente às questões colocadas, gostaria de tecer breves considerações sobre a situação. Para a Igreja – e talvez para o mundo – há uma cisão histórica significativa: antes e depois de Cristo! E nem essa foi de rutura total, pois dá continuidade a muitos antecedentes, nomeadamente em Israel. Nesse sentido, não estou convencido que haja um “antes ou depois da pandemia”, com alterações radicalmente significativas. É claro que os eventos históricos marcam a nossa forma de a viver, e aquele que estamos a atravessar é um evento significativo. Nesse sentido, deixará marcas. Mas não me parece que provoquem qualquer rutura, a ponto de se avizinhar um novo mundo ou uma nova igreja.

O momento de crise – nos mais variados sentidos do termo – é, sem dúvida, ocasião para receios, mas também para esperanças, o que pode levar à formulação de que se esperam transformações significativas para depois deste momento. Sendo realista – mais do que pessimista – não me parece que assim seja, pelo menos não na medida em que o possamos imaginar (ou até desejar). Mas o momento permite-nos sonhar com elementos que gostaríamos que se alterassem, quer no mundo, quer na Igreja, como comunidade de humanos com os pés na terra.

Aquilo que me parece mais revelador, neste momento pandémico – e que poderá ter efeitos pragmáticos (ou não), numa fase posterior – é o conjunto das experiências mais ou menos paradoxais que nele experimentamos. Salvaguardando a minha posição realista, passo a enumerar alguns elementos que me parecem sobressair na experiência que atravessamos, deixando de parte muitos outros

  1. Que ‘mundo’ e que ‘Igreja’ estão em ocaso?

– O mundo que, para simplificar, costumamos chamar “moderno”, é um mundo construído em cima das capacidades humanas, que ao longo dos últimos séculos se desenvolveram extraordinariamente, sobretudo através da tecnologia. Esse mundo está na base do que se denomina globalização e comporta todas as suas manifestações, incluindo a mobilidade permanente e sem fronteiras. As maravilhas conquistadas por esse mundo – e que são muitas, e muito benéficas para a humanidade – chegaram mesmo a encobrir os problemas que pode acarretar, e que estão sobretudo relacionados com um exercício do poder assente na prepotência, quer sobre o outro humano, que sobre a terra, em geral. Já há tempos que vínhamos a perceber os paradoxos desse mundo, que abria possibilidades inéditas à humanização do planeta mas que, ao mesmo tempo, instaurava novos desequilíbrios, entre pessoas, entre povos, mesmo no conjunto do planeta. Esta pandemia apenas torna esses paradoxos mais evidentes. Significará isso o fim do mundo moderno e das desmesuradas expectativas que nele colocámos?

– A Igreja, como é natural, está no mundo e é inevitavelmente marcada pelas tendências que o determinam. Também a modernidade deixou nela as suas marcas, em todos os sentidos. O reverso das suas conquistas – em geral humanizantes -, manifesto no estilo prepotente de domínio, também marcou certas formas de organização eclesial, tendencialmente burocráticas e mesmo tecnocráticas. A confiança nas capacidades das realizações humanas, sendo legítima, pode ter ido além dos limites, encerrando a comunidade eclesial, como instituição, na complacência de si mesma e das suas possibilidades. Isso pode, por um lado, ter “cegado” a Igreja em relação aos problemas que um sistema global tecnocrático pode provocar e, por outro lado, ter mesmo inspirado, nas formas de organização eclesial, certa mimetização dos sistemas globalizantes. Muitas comunidades eclesiais acabam por refletir, no seu quotidiano, o quotidiano de um mundo satisfeito consigo mesmo, porque detentor de suficiente riqueza e poder, que o tornam alheio às experiências de muitos contemporâneos nossos que, noutros mundos – ou até na proximidade – são tratados de forma desumana. Este desequilíbrio não é novo. A pandemia apenas pode tê-lo revelado de forma mais clara.

  1. Que ‘mundo’ e que ‘Igreja’ se vislumbram na (estão em) aurora?’

– As pandemias sempre foram um problema sério, em muitos momentos da história. O nosso mundo moderno chegou a acreditar que não seriam mais possíveis, a não ser que fossem provocadas pelos humanos, ou pelo seu desleixo. Mesmo que essa hipótese não seja de todo descartável – o que coloca a questão ainda mais grave daquilo que o desenvolvimento tecnológico, a par do modo prepotente de exercer o poder, podem provocar – aquilo que verificamos com esta pandemia é que somos mais vulneráveis do que pensávamos. E somo-lo todos – embora não todos por igual, como é evidente. A universalidade da nossa condição vulnerável, que parecia esquecida, voltou a tornar-se evidente; e, no contexto dessa universalidade, tornou-se evidente haver humanos que, em certas condições, são especialmente vulneráveis. Isso exige uma atitude humilde, em primeiro lugar. Na sequência dessa humildade, surge a exigência de especial cuidado e responsabilidade para com os que são mais vulneráveis. E tudo isso de um modo universal, que ultrapassa as fronteiras das famílias, das crenças e mesmo das nações. A globalização manifesta-se, assim, de forma forte, mas diferente da sua aplicação simplesmente tecnocrática.

Paradoxalmente, a tecnologia, podendo ser uma das raízes de um mundo que se desmorona, manifesta-se eficaz num contexto de crise, revelando potencialidades futuras. Quase poderíamos assumir que a pandemia nos conduz a uma avaliação mais lúcida das possibilidades e dos limites tecnológicos – assim como das possibilidades e dos limites do quotidiano dos humanos que somos e que, sendo complexo, não deixa de ser relativamente simples e básico.

– A Igreja, como seria de esperar, vê-se envolvida nessas experiências intensas. Explora as possibilidades tecnológicas para modos de relação que se reinventam em circunstâncias diferentes; mas, ao mesmo tempo, sente-se mais próxima das pessoas reais que, no seu quotidiano, experimentam na carne a vulnerabilidade que os marca.  Em muitos casos, tem mesmo que defender, politicamente, o valor e a dignidade dos mais vulneráveis, que certos sistemas políticos, ainda demasiados modernos, parecem querer esquecer, em nome de processos evolutivos inevitáveis ou em nome da sobrevivência dos mais fortes. É uma Igreja que não pode ser senão a companheira do quotidiano exigente dos humanos, sobretudo daqueles que as estruturas continuam a esquecer.

Ora, esta experiência eclesial provocada pela epidemia – e que nada tem de novo, na história do cristianismo – levanta questões estruturais, relativamente à organização das comunidades eclesiais e à reinterpretação de certas estruturas. Há certas questões que já se colocavam de forma premente antes da pandemia – nomeadamente devido, por exemplo, à questão dos abusos, mas também devido aos processos de secularização e urbanização – e que agora se colocam de forma talvez mais intensa.

Se a Igreja se compreende mais intensamente como orientada para o exterior de si mesma, envolvida no quotidiano dos nossos contemporâneos e nos seus problemas, por vezes paradoxais – como é o caso da tecnologia – como poderão organizar-se a comunidades eclesiais para melhor corresponderem àquilo que lhes é exigido? Em vez das multidões anónimas que levam ao delírio – ou à apatia – não será ocasião para valorizar as pequenas comunidades, em que cada pessoa conta? Não deverão as comunidades eclesiais ser menos concentradas numa organização centralizada, tendencialmente clerical, e mais laicais, assentes na diversidade dos seus membros e nas redes que entre eles se estabelecem? Que configurações organizacionais – mesmo em relação ao exercício do poder – poderão adquirir essas comunidades, para melhor corresponderem, na prática quotidiana e também na estrutura, à sua missão? Não poderá isso ajudar a uma igreja mais pobre, mais humildade, mais próxima – na proximidade do corpo, que a tecnologia não consegue substituir?

Como se vê, não são questões novas nem estranhas. Também não se espera uma transformação radical. Mas a pandemia pode ser excelente ocasião para as recolocar e avaliar a sua seriedade. Isso, é claro, sem querer transformar algo que é mau – pois provoca vítimas – em algo bom.


*Professor Catedrático na Universidade Católica Portuguesa | Diretor do Centro Regional da UCP – Braga
Imagem de fernando zhiminaicela por Pixabay