Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura
Luís Manuel Pereira da Silva*
O autor e a obra
Aldous Huxley, Admirável mundo novo, Lisboa, Edição «livros do Brasil, S/D. [Direitos de publicação reservados em 1932]
Aldous Huxley (1894-1963) é um autor de origem inglesa, que tem em ‘admirável mundo novo’ a sua obra-prima, apesar de outras obras suas terem tido reputado reconhecimento, entre as quais poderemos destacar os ensaios ‘as portas da perceção’ e ‘a filosofia perene’, e o romance ‘a ilha’, já transposto para a tela do cinema.
Pertencendo a uma família britânica de renome, tendo o seu avô, Thomas Henry Huxley (1825-1895), ficado na história pela sua defesa da teoria darwinista e pela criação do termo ‘agnóstico’, Aldous evidencia uma atitude crítica em relação a estes ascendentes, posição que se repercute nas suas obras, entre as quais ‘admirável mundo novo’ não é exceção. Nesta obra, evidenciam-se sinais de demarcação em relação a esse agnosticismo e em relação a uma qualquer ingénua receção do progresso científico como sendo intrinsecamente virtuoso. A omnipresença da ironia para com essa ingenuidade é um dos traços marcante desta obra. O autor coloca no sujeito a decisão final, mas confere-lhe todos os instrumentos para que possa ajuizar sobre o que fazer perante as inauditas aberturas que nos proporcionam a ciência e a tecnologia. Recusar aprioristicamente não será a decisão, mas também o não será a sua absoluta receção. Ser crítico é o que se pede do individuo para que não se abata sobre a sociedade humana ‘o admirável mundo novo’.
A genialidade desta obra encontra-se, não apenas na narrativa fluente que prende o leitor, desde o início, mas também no facto de se tratar de um enredo escrito ainda na década de 30, quando o mundo ainda não vivera os horrores da II Guerra Mundial, onde o totalitarismo se tornou evidente aos olhos de todos, e ainda muito poucos vislumbravam o que se escondia para lá do que viria a ser a ‘cortina de ferro’. Da revolução russa e do totalitarismo que ela criara muito poucos tinham consciência. Teríamos de esperar por 1984 para que isso se tornasse notório…
E o eugenismo, sendo prática desde que, em 1883, se criara o termo, pela pena de F. Galton, era comummente aceite, sem grande consciência crítica (exceto, como recordam André Pichot[1] e Matt Ridley[2], nos países de influência católica, onde o respeito pela dignidade humana se aplicava a todos, sem exceção dos portadores de deficiência). Teríamos de esperar pelo que nos mostraria a segunda grande guerra para despertar desse torpor. Mas ‘admirável mundo novo’ fora um aguçado alerta… E continua a sê-lo, hoje!
[1] Pichot, André, O eugenismo: geneticistas apanhados pela filantropia, Lisboa, Instituto Piaget, 1997.
[2] Ridley, Matt, Genoma: autobiografia de uma espécie em 23 capítulos, Lisboa, Gradiva, 2001
Marcas de água (o que fica depois de se deixar o livro)
‘Admirável Mundo Novo’ conta-nos a vida da sociedade na Londres de 2540 (no ano 632 DF – depois de Ford – muitos dos nomes escolhidos são alusões a nomes reais; Ford (que aparece aludindo ao trocadilho de ‘our Ford’ com ‘Our Lord’ (Nosso Senhor) poderá aludir, ainda, a uma sociedade freudiana, mais do que ‘fordiana’, ainda que possa supor-se uma intencional equivocidade..). A natureza desta narrativa, contrária à de uma visão utópica, situa-a no âmbito das chamadas «distopias», em que ‘1984’, ‘O triunfo dos porcos’ são outros ilustrativos exemplos, desta feita, da pena de George Orwell, já analisado nesta rubrica.
O autor recolhe o título da obra de uma citação de Shakespeare, ‘oh, admirável mundo novo’, começando, logo aí, a ironia desdenhosa que caracteriza toda a narrativa.
As personagens desta distopia esquivam-se a toda a emoção, são programadas e socialmente categorizadas (por letras do alfabeto grego: os ‘alfas’, os ‘betas’, os ‘épsilões’, etc.) de acordo com o que geneticamente está previsto e devidamente controlado. Só o ‘selvagem’ parece esquivar-se a essa programação, ou outras vagas memórias que tudo no sistema pede que se apague. Há salas de predestinação social, e um ‘soma’ que os habitantes desta distopia tomam para combater a infelicidade, pois esta é uma sociedade onde sofrer não pode ter lugar. Ficar infeliz é proibido, sendo, por isso, inevitável combater tudo o que o possa gerar, como, por, exemplo, vincular-se aos outros.
Nesta sociedade, não há infelicidade, mas também todas as emoções são controladas para que tudo seja devidamente controlado e mantido dentro de uma ordem previamente definida. O leitor como que sente o cheiro à ‘desinfeção’ das emoções, pois tudo é assético.
Sentimo-nos perante uma sociedade feita de seres que continuam a ter a designação de ‘humanos’, mas que não o são, por estarem impedidos (ainda que sem consciência disso – foi intencionalmente apagada) de se relacionarem comprometidamente.
Uma leitura crítica de tal sociedade permite-nos constatar que estamos perante ‘indivíduos’ que pensam agir em liberdade, mas que não são, em verdade, ‘pessoas’ (apesar de o termo ser utilizado, não representa o que diz…) que lutam e ambicionam algo maior do que o que já são; ambicionar é algo que lhes está vedado… ‘As pessoas são felizes, conseguem o que querem e nunca querem aquilo que não podem obter. Sentem-se bem, estão em segurança, nunca estão doentes, não receiam a morte, vivem numa serena ignorância da paixão e da velhice, não são sobrecarregadas com pais e mães, não têm mulheres, nem filhos, nem amantes, pelos quais poderiam sofrer emoções violentas, estão de tal modo condicionados que, praticamente, não podem deixar de se portar como devem. E se por acaso alguma coisa corre mal, há o soma, que o senhor atira friamente pela janela em nome da liberdade […].’ (p. 230)
A leitura desta obra gera em quem a lê algo semelhante ao que nos faz o despertador, pela manhã. Quando Huxley a pensou, o descomprometimento era, ainda, um cenário que surpreendia. O próprio autor, no prefácio escrito em 1946 e recolhido na edição que aqui seguimos, mostra ficar surpreendido por ‘a promiscuidade sexual do Admirável Mundo Novo [não lhe parecer] estar muito afastada’, sendo que ‘à medida que a liberdade económica e política diminui, a liberdade sexual tem tendência para aumentar, como compensação’ (p. 17). Esta ‘previsão’ é elucidativa de quanto se transformou a sociedade, no sentido do que narrava o ‘admirável mundo novo’ como uma distopia.
Estará o mundo distópico?
Na mesma página que o autor (citações)
(Do prefácio de 1946) ‘Existem já certas cidades americanas onde o número de divórcios é igual ao número de casamentos. Dentro de alguns anos, sem dúvida, passar-se-ão licenças de casamento como se passam licenças de cães, válidas para um período de doze meses, sem nenhum regulamento que proíba a troca do cão ou a posse de mais de um animal de cada vez. À medida que a liberdade económica e política diminui, a liberdade sexual tem tendência para aumentar, como compensação. E o ditador (a não ser que tenha necessidade de carne para canhão e de famílias para colonizar os territórios desabitados ou conquistados) fará bem em encorajar esta liberdade. Juntamente com a liberdade de sonhar em pleno dia sob a influência de drogas, do cinema e da rádio, ela contribuirá para reconciliar os seus súbditos com a servidão que lhes estará destinada.’ (p. 17)
‘Vendo bem, parece que a Utopia está mais próxima de nós do que se poderia imaginar há apenas quinze anos. Nessa época coloquei-a à distância futura de seiscentos anos. Hoje parece praticamente possível que esse horror se abata sobre nós dentro de um século. Isto se nos abstivermos, até lá, de nos fazermos explodir em bocadinhos. Na verdade, a menos que nos decidamos a descentralizar e a utilizar a ciência aplicada não com o fim de reduzir os seres humanos a simples instrumentos, mas como meio de produzir uma raça de indivíduos libres, apenas podemos escolher entre duas soluções: ou um certo número de totalitarismos nacionais, militarizados, tendo como base o terror da bomba atómica e como consequência a destruição da civilização (ou, se a guerra for limitada, a perpetuação do militarismo), ou um único totalitarismo internacional, suscitado pelo caos social resultante do rápido progresso técnico em geral e da revolução atómica em particular, desenvolvendo-se, sob a pressão da eficiência e da estabilidade, no sentido da tirania-providência da Utopia. É pagar e escolher.’ (pp. 17-18)
‘Não nos contentamos unicamente em incubar os embriões: isso qualquer vaca é capaz de fazer. Também os predestinamos e condicionamos. Decantamos os nossos bebés sob a forma de seres vivos socializados, sob a forma de Alfas, ou de Épsilões, de futuros varredores ou de futuros…’ (p. 29)
‘- Não sente o desejo de ser livre, Lenina?
– Não percebo o que quer dizer. Eu sou livre. Livre para gozar à vontade, para gozar o mais possível. «Agora todos são felizes!».’
Ele riu-se.
– Sim. «Agora todos são felizes!» Começamos a impingir isso às crianças de cinco anos. Mas não sente o desejo de ser livre de outra forma, Lenina? De uma maneira pessoa, por exemplo, e não à maneira de todos.’ (p. 103)
‘[…] a civilização é a esterilização […]’ (p. 119)
‘- Velho? – repetiu ela. – Mas o Director também é velho, e há muita gente que é velha e, apesar disso, não é assim.
– Porque nós não lhes permitimos que o sejam. Preservamo-los das doenças; mantemos artificialmente as suas secreções internas ao nível do equilíbrio da juventude; não deixamos cair o seu índice de magnésio e de cálcio abaixo do que era aos trinta anos; fazemos-lhes transfusões de sangue novo; mantemos o seu metabolismo permanentemente estimulado. Assim, evidentemente, eles não têm este aspecto. Em parte – acrescentou – porque a maioria de entre eles morre muito antes de ter atingido a idade deste velho. A juventude quase intacta até aos sessenta anos. Depois, trás! O fim.’ (p. 120)
‘Parece-me frequentemente que é possível que nos tenha faltado qualquer coisa por não termos tido mãe.’ (p. 121)
‘Ela contava-lhe como toda a gente era feliz, sem nunca haver pessoas tristes ou zangadas, como cada um pertencia a todos. Falava-lhe de caixas onde se podia ver e ouvir o que se passada do outro lado do mundo, os bebés em bonitas provetas bem limpas – tudo tão limpo, sem mais cheiros, sem a menor porcaria!’ (P. 137)
‘Partindo da sala de Predestinação Social, os escalators desciam ruidosamente para o subsolo, onde, na obscuridade vermelha, aquecendo-se no seu colchão de peritónio e fartos de pseudo-sangue e de hormonas, os fetos cresciam, cresciam, ou então, envenenados, estiolavam-se no estado definhado dos Épsilões.’ (p. 157)
‘Em mil e oitocentos biberões, mil e oitocentos bebés, cuidadosamente etiquetados, mamavam simultaneamente o seu meio litro de secreção externa pasteurizada.’ (pp. 157-158)
‘Linda morria acompanhada – acompanhada e com todo o conforto moderno. O ar era constantemente vivificado por alegres melodias sintéticas. Junto de cada leito, diante do ocupante moribundo, havia um recetor de televisão. Deixava-se funcionar a televisão, como se fosse uma torneira aberta, de manhã à noite. De quarto em quarto de hora o perfume dominante na sala era automaticamente mudado.’ (P. 209)
‘- Mas porque está ele proibido? […]
[…] Porque é velho, eis a razão principal. Aqui não temos o culto das coisas velhas.
– Mesmo quando são belas?
– Sobretudo quando são belas. A beleza atrai, e nós não queremos que as pessoas sejam atraídas pelas coisas velhas. Queremos que amem as coisas novas.’ (P. 229)
‘As pessoas são felizes, conseguem o que querem e nunca querem aquilo que não podem obter. Sentem-se bem, estão em segurança, nunca estão doentes, não receiam a morte, vivem numa serena ignorância da paixão e da velhice, não são sobrecarregadas com pais e mães, não têm mulheres, nem filhos, nem amantes, pelos quais poderiam sofrer emoções violentas, estão de tal modo condicionados que, praticamente, não podem deixar de se portar como devem. E se por acaso alguma coisa corre mal, há o soma, que o senhor atira friamente pela janela em nome da liberdade […].’ (p. 230)
‘Nosso Ford fez muito para tirar à verdade e à beleza a importância que lhe concediam, transferindo essa importância para o conforto e para a felicidade.’ (P. 237)
‘[…] apesar de tudo […] é natural acreditar-se em Deus quando se está só, sozinho, à noite, quando se pensa na morte…
– Mas agora nunca se está só […].
– Procedemos de forma que as pessoas detestem a solidão e dispomos a vida de tal maneira que seja mais ou menos impossível conhecê-la.’ (P. 245)