Qui. Abr 25th, 2024

ROSTO DE MISERICÓRDIA

JOÃO ALMIRO DE MELO MENESES E CASTRO

Pe. Georgino Rocha

João Almiro de Melo Meneses e Castro (de agora em diante João Almiro) nasce no seio de uma família cristã, a 24 de Junho de 1926, em Canas de Santa Maria, Tondela. Tem vários irmãos. O pai era médico e exercia uma grande influência no filho João que pretendia seguir-lhe os passos. Mas foi dissuadido por ele, pois já havia na família “médicos suficientes”. Em Coimbra especializa-se em farmácia, exercendo a profissão de farmacêutico durante muitos anos com entusiasmo e competência. Casa catolicamente e tem sete filhos. Na relação com eles, aprende a ser pai e, levado pelo coração, alarga o amor a quem a vida não bafeja nem sorri, aos excluídos sociais, por tendências desviantes, por influências negativas ou por pressão de condições desumanas envolventes.

Dotado de uma rica personalidade em que sobressai a bondade e a gentileza, a coerência de atitudes e o sábio uso dos bens, João Almiro realiza uma obra notável de beneficência e recuperação, de educação e reinserção social, de pai providente a muitos órfãos de amor e de dignidade. A sua longa vida, morre aos 91, torna-o testemunha de acontecimentos de grande projecção, de teorias que se afirmam como verdades “absolutas” e se desfazem como nuvens de outono, de ideologias que se afogam na sua própria arrogância. E compadecido perante tudo o que vê e sente, adopta como consigna definitiva do seu modo de ser e de estar na vida: “Aprendam a amar”. “Metade da minha vida é feita a amar e a outra metade amando”.

Empreendedor lúcido e corajoso

A paixão pela profissão e pelo serviço de bem-fazer leva-o a iniciativas e compromissos, a empreendimentos e a sonhos que tem a felicidade de transformar em realidade conseguida. Configura assim o seu perfil plurifacetado e vivo. No rés-do-chão da sua casa, abre a farmácia onde exerce um autêntico serviço de atendimento ao público, de investigação científica e de estudo dos casos que lhe iam chegando. Realiza assim a paixão que dá sentido ao seu espírito empreendedor: estudar para ter mais competências e servir melhor. No entanto, reconhece que estar ao balcão lhe reduz muito os horizontes. E procura outra medida. «Para estar ao balcão é preciso ser relações públicas», brinca como quem quer dar uma explicação.

Assume cargos públicos: Vereador na Câmara Municipal de Tondela e presidente da Junta de Freguesia de Campo de Besteiros, várias vezes. Cria a Labesfal, Laboratório de Especialidades Farmacêuticas, empresa de medicamentos genéricos, que entrega aos filhos porque confessa enternecido: «Agora tenho uma riqueza maior. São estes homens e estas mulheres que vivem comigo». É reconhecido como “empresário, autarca e humanista filantropo, pelas grandes causas que abraçou na sua vida”, declara o presidente da Câmara de Tondela, a propósito do luto municipal aquando da morte de Almiro a 28 de Setembro de 2017. “A Labesfal é o que é hoje devido à sua visão empreendedora e ao seu sentido apurado enquanto farmacêutico para a investigação e para o desenvolvimento desse projeto”, afirma o autarca tondelense.

Participa em eventos internacionais ligados à área da sua especialização onde faz comunicações originais.Funda as instituições Convívio Jovem e Casa das Andorinhas, “as meninas dos seus olhos”, onde o amor faz maravilhas. A fé cristã é seiva que irriga o seu humanismo solidário. A prática dominical robustece as suas profundas convicções.

Mestre na arte de acolher e acompanhar

João Almiro mostra como a vida é mestra pelas situações novas que surgem, pela experiência que proporciona, pelos avanços e recuos que regista e pelo olhar crítico que desenvolve. O balcão oferece um espaço de aprendizagem e de proximidade. E o desejo de ajudar mais e melhor leva-o não apenas a acolher quem o procura, mas a ir onde pressente a dor, as lágrimas, a miséria. Faz-se peregrino e encontrado. Oferece ajuda, lança apelos, adverte os renitentes, acompanha os incriminados, cria laços familiares com os que consegue reunir nas suas instituições. A TVI 24 dedica-lhe a grande reportagem “Até Voares”, programa premiado a nível internacional, programa que visualiza o histórico de Almiro no seu ambiente do dia-a-dia. A revista Saúde reproduz entrevistas que desvendam constantes do seu mundo interior e realçam o contributo dado por ele à ciência farmacêutica. E o coro de vozes alarga-se nas redes sociais em tons de grande apreço pela vida doada em serviço gratuito e dedicação exclusiva.

Rosto de misericórdia: Dar-se em amor

“Sou louco, mesmo louco de amor, mas do amor que se dá e não do que se recebe, como infelizmente impera na nossa sociedade moderna. A felicidade e a realização só são possíveis quando nos damos em amor, sem saber como e a quem. Metade da minha vida é feita a amar e a outra metade amando”. Bela síntese que nos lega como “testamento vital”.

O percurso de Almiro leva-o aos locais onde pessoas sofrem por falta de tudo, a começar pelo indispensável à sobrevivência. Ele mesmo narra situações de incrível realismo e dor. E a lista regista nomes (reais ou fictícios para evitar inconfidencialides) como Tó Mané, Samuel, Marina, Betinha, Jorge, Rafael e tantos outros. E os casos têm um realismo incomodativo, que reproduzo em breves relatos extraídos da entrevista feita por Carlos Enes para a  “Revista Farmácia de Portugal”, a  21 de Março de 2016.

“Aquela rapariga que eu salvei da lama, aquela rapariga que eu fui buscar ao Hotel Ibiza, a Setúbal, às duas da manhã, com 11 anos, estava na cama com um velhote de 60 anos e tinha sido vendida por 100 contos. O velhote pagou 100 contos para dormir uma noite com uma miúda virgem, com 11 anitos. Há dinheiro que pague isso? Que me interessa o dinheiro?”.

Samuel, 35 anos, trabalha hoje entre fardos de palha. Descreve uma infância de miséria: “Chegava a casa. ‘De onde é que tu vens, vagabundo?’ Pronto, porrada em cima”. Fala em gratidão: “Quando eu precisei o Dr. Almiro ajudou-me, agora é a minha vez. Até para caminhar temos de o segurar, Se agente lhe dá com os pés e vamos embora, o que é dele sem nós”.  O pai de Samuel, o homem de quem fugiu na infância, veio também aqui parar. Sentado na velha cadeira, vê como o filho está praticamente independente, com carro próprio carro pago com o dinheiro que ganha no matadouro de Vilar de Besteiros.

“Uma miúda de 12 anos, veio para aqui a pedido do tribunal de Setúbal. Chegou-me aqui à noite, com a polícia. A miúda algemada, algemada! E eu dizia-lhes: «Tirem-lhe as algemas!», e eles, «Não, sem o senhor assinar o termo de responsabilidade, não tiramos». Assinei o termo de responsabilidade. Três dias depois fugiu e eu apanhei-a outra vez. Era de Aveiro. A minha filha andou seis meses com a miúda num dermatologista, porque era abusada numa discoteca… Hoje está casada, tem um apartamento, tem marido, tem uma filha (o rosto de João Almiro ilumina-se de verdadeira felicidade). Imagine o que uma garota de 12 anos sofre. Um velhote com dinheiro. Eu prefiro não ter dinheiro. Eu não quero levar o meu caixão cheio de dinheiro. Quero um caixão de amor e serviço, que dei aos outros. É para isso que eu vivo. Estou radiante para morrer como Deus quiser, mas não é com o dinheiro. É com amor que dou a eles. E venço-os pelo amor”.

 “Sabe como funcionam as andorinhas, não sabe?,  pergunta ao entrevistador. Elas vão e vêm. Quando estão preparadas voam, mas depois voltam. Este é uma andorinha. Encontrou uma miúda e voou». A explicação de João Almiro ajuda a perceber a inscrição na varanda que dá para a rua principal: «Andorinhas». Foi assim que o farmacêutico baptizou a casa de família, onde agora vive com cerca de quarenta pessoas”.  Apetece dizer: Basta de palavras. As obras falam mais alto e o amor feito serviço é mais convincente.

Chaves de leitura da sua vida

Em ocasiões diversas, João Almiro faz declarações e escreve mensagens sobre a sua vida e obra. Recolho algumas em frases que parecem provérbios sapienciais.

O maior prémio do trabalho que fazemos na Casa das Andorinhas é ver renascer os homens e mulheres que ajudamos. Às vezes, tudo o que é preciso é dar a mão. Há homens que só têm a rua, têm o desprezo e as tentações. Não têm ninguém que lhes dê a mão. E a gente dá-lhes um dedo e eles levantam-se logo.

Há homens tão pobres, tão pobres, que só têm dinheiro e bens materiais, aos quais estão demasiado apegados. Experimenta dar um pouco de ti mesmo e verificarás que recebes muito mais, para além da tranquilidade da tua consciência. Há muitos analfabetos que são grandes doutores e muitos doutores por polir e educar. Todos os exercícios de paciência consistem em actos de amor.

Para que é que eu quero o dinheiro? Para amar, mais nada. Tornar os outros felizes iguais a mim. Dar-lhes o direito que eu tive. Eu tive um pai e uma mãe e uma família, e todos têm direito a isso… Temos uma sociedade que vive de fachada. É tudo muito bonito, custa dinheiro, queremos mandar nos outros. Eu não quero mandar, quero que mandem em mim. Sou o guarda deles, mas para me levantar da cama tenho de os chamar Perguntaram-me que presente gostava de receber neste dia em que faço 89 anos. É simples: comida para alimentar as pessoas que vivem comigo. Obrigado a todos pelo maravilhoso apoio que me têm dado!

O rosto de Almiro irradia felicidade. Não de aparência nem de fachada, mas fruto de um coração que sabe amar e, por amor, pauta toda a sua vida. Não de momentos fugazes e efémeros, mas de coerência comprovada na sua história pessoal e na consistência da sua obra. Não de acções vistosas e deslumbrantes, mas de gestos familiares que desvendam novas dimensões à misericórdia compassiva pelas pessoas feridas na sua dignidade inalienável e se faz amizade incondicional.

 

(Foto encontrada na página Ao ‘tom’dela)