Qui. Abr 18th, 2024
‘Duas Asas’ – rubrica dedicada ao pensamento e escritos de Edith Stein
(Parceria com o Carmelo de Cristo Redentor – Aveiro)

A PESSOA COMO SER RELACIONAL

Javier Sancho*

 

Juntamente com o tema da individualidade, Edite desenvolve o tema da comunidade. É algo fundamental na vida do homem examinar as suas relações, o sentido e o valor de cada um. Não só porque tem de relacionar-se com outros e viver em sociedades e comunidades, mas porque o seu ser necessita desta dimensão para se desenvolver em plenitude. O tema aparece em todos os seus escritos onde fala da pessoa humana. Desde as suas obras fenomenológicas, onde inclusive o tema se insinua nos títulos (Indivíduo e comunidade ou Investigação sobre o Estado), até aos seus estudos de filosofia cristã (Ser finito e ser eterno, Estrutura da pessoa humana…) onde há sempre um apartado dedicado a tratar a questão. Evidenciamos agora alguns dos elementos mais destacados.

 

a) Elemento constitutivo da pessoa

Ser pessoa implica ontologicamente relação. A própria estrutura do ser humano enquanto espírito está a exigir abertura. O indivíduo, se existisse só ele, já não seria pessoa. É precisamente na comunidade humana onde a sua individualidade adquire sentido e valor. O desenvolvimento do meu ser depende da minha posição perante os outros. No âmbito profissional observa-se distintamente: a minha profissão não teria nenhum sentido e eu não poderia realizá-la sem a existência do outro. Este dado da experiência mais elementar pode ser ponto de partida para começar a considerar o outro como um valor. Inclusive desde o plano mais inicial de consideração da minha dignidade, do que eu sou, o outro joga um papel essencial. Ficava manifesto no tema da empatia.

Afirmar que a pessoa é um ser relacional, é defini-la como membro de um todo: «a relação é novamente uma relação completamente diferente, uma vez que a essência singular não é simplesmente uma particularização relativa ao conteúdo, mas um membro de um todo que se realiza enquanto unidade vital e que só pode desabrochar   dentro do todo no seu lugar e com o concurso dos outros» (SF 522).

Mas esta relação não podemos entendê-la simplesmente do ponto de vista superficial, isto é, enquanto que a pessoa necessita da «comunidade» para se reproduzir, conservar, proteger… Este carácter relacional abrange toda a realidade do ser humano, quer dizer, «todas as produções do espírito humano convertem-se em bens comuns da humanidade para servir de alimento às almas das gerações contemporâneas e seguintes» (Ib.). De tal maneira que o ser «relacional» do indivíduo estende-se a toda a humanidade, a qual, por sua natureza espiritual também «é chamada a uma vida em sociedade que se eleva por cima dos limites do tempo e do espaço» (ib.).

É tão necessário o desenvolvimento da dimensão «relacional» do ser humano que, sem ela, nunca chegaria a conhecer-se realmente. Já se insinuava em relação com o que implica o acto empático, que começamos a conhecer só quando entramos em contacto com o outro. Sempre que nos aproximemos numa atitude de abertura, ou como diria Edite Stein, de autêntica empatia. Falando o significado da empatia para a construção da própria pessoa, diz-nos: «não só nos ensina a tornar-nos nós mesmos objecto, mas leva a desenvolver…, o que “dormita” em nós, e como empatia com estruturas pessoais formadas de outra maneira nos ilustra sobre o que não somos, sobre o que somos de mais ou de menos em relação aos outros. Com isto, é dado, a par do autoconhecimento, um importante meio auxiliar para a autovalorização… Toda  a apreensão de pessoas de outra classe pode chegar a ser fundamento de uma comparação de valores» (Sobre o problema da empatia, 134).

 

b) Âmbito de realização pessoal

O ser relacional é efeito dessa energia espiritual presente em toda a pessoa, que a abre ao outro, superando os limites da própria subjectividade. É uma exigência implícita na pessoa, que pode ser obstaculizada, mas que está sempre a exigir que a pessoa ultrapasse os seus horizontes para se realizar a si mesma, integrando em si o mundo dos valores, objectos, experiências, pessoas… Só assim se entende e explica a razão pela qual a pessoa se realiza e alcança plenamente a sua felicidade no amor: é o acto espiritual supremo, do qual é capaz pela sua espiritualidade. No amor o homem entrega-se totalmente e acolhe o outro totalmente. É a mostra mais evidente da sua espiritualidade. Isto porque o amor só é possível entre pessoas espirituais.

Desde um nível antropológico teológico justifica-se igualmente a razão pela qual o homem é capaz de uma relação pessoal com Deus, excluída totalmente no reino animal e vegetal. Dizer que o homem é um ser relacional e espiritual, é dizer que o homem é capaz de amar.

Na relação com a comunidade humana o homem não só se realiza, mas contribui – com a sua entrega –, (o seu trabalho, a sua criatividade…) para o desenvolvimento da comunidade. Para Edite Stein não há oposição entre indivíduo e comunidade (sempre que ambas sejam autênticas). A comunidade não é uma soma de indivíduos, mas a realização de individualidades num âmbito de relações intersubjectivas, quer dizer, todos e cada um são sujeitos (EUS) com um nome, e não objectos ou números. Uma comunidade que suprime o indivíduo deixa de ser comunidade. E um indivíduo que prescinde da comunidade não desenvolve a sua individualidade própria e característica, mas uma falsa imagem ou pretensão da mesma.

No plano religioso do cristianismo isto adquire um valor ainda mais sólido, sobretudo se contemplado como um membro desse Corpo de Cristo que todos formamos: «Esta experiência sempre fragmentária, por vezes mal interpretada ou inteiramente incompreendida, recebe o seu fundamento sólido e uma clara significação pela doutrina da criação e da redenção, que remonta à origem de todos os homens a um antepassado original e situa o fim do desenvolvimento inteiro da humanidade na comunhão sob a única cabeça divina e humana, num só corpo místico, o de Jesus Cristo» (SF 525). Vemos novamente como a verdade revelada termina ampliando ou assentando os princípios da compreensão do homem deduzidos em clave filosófica-antropológica.

Neste mesmo ser relacional encontra Edite o fundamento antropológico da vocação de todo o ser humano à ecologia, entendida como relação harmónica com toda a criação. «Podemos ir ainda mais além e compreender sob o corpo místico a criação inteira segundo a ordem natural, uma vez que tudo foi criado à imagem do Filho de Deus, e porque entrou pela sua encarnação no conjunto da criação: também segundo a ordem da graça, pois a graça da cabeça derrama-se com profusão em todos os seus membros, não só nos homens, mas também em todas as criaturas» (SF 542).

Em relação com este tema, deveríamos ter em conta todas as implicações no âmbito social e político que Edite também desenvolve. Para ela é de suma importância reconhecer a verdadeira natureza do que é a comunidade, a sociedade, a massa, o Estado…, porque ali é onde, em definitivo, se leva à prática a dimensão relacional ou social do ser humano. Para um aprofundamento destes temas remetemos para as suas obras.

*Javier Sancho. 100 Fichas sobre Edith Stein. Edições Carmelo, Avessadas, 2008. Pp. 174-175.


Imagem de Jackson David por Pixabay