Ter. Fev 18th, 2025
Modos de interação entre ciência e religião 

“P”… [“Pautado…”]


Pautado pela Espiritualidade

Miguel Oliveira Panão

Blog & AutorNewsletter

 

Immanuel Kant disse — «Existem duas coisas que não precisam de significar coisa alguma. Uma delas é a música, a outra é o riso.» — O pianista John Cage numa entrevista recorda essa frase e explica que a música e o riso não precisam de significar nada para nos dar um prazer profundo. E o prazer profundo que experimentamos transforma-nos. Na música, a pauta orienta o músico pelas notas, pausas, ritmo, de modo a que cada instrumento que segue a pauta nos possa pautar, despertando sentimentos, memórias ou apertos no estômago. Se olharmos para a nossa vida como uma pauta na grande sinfonia do cosmos construída pelos nossos relacionamentos com os outros e o mundo, como gostarias de ser pautado? Que aspectos mentais e espirituais poderiam ajudar-nos a pautar a nossa vida para se entrelaçar misteriosamente com a vida ao nosso redor e produzir a melodia, e até a dissonância, no momento certo?

O corpo alimenta-se de matéria para sobreviver. Há matéria que nos faz bem e outra que nos faz menos bem, apesar de saber bem. Estaremos cientes de que a mente e o espírito, as outras duas dimensões do ser humano para além da corpórea, também precisam de alimento? Por essa razão, na era digital, não sei quantos se darão conta de que a razão de passarmos tanto tempo on-line é pela necessidade de alimentar a mente e o espírito. Porém, assim como a refeição preparada com tempo, diversificada no conteúdo e reduzida ao essencial, deu lugar ao fast-food, também a solitude, leitura e meditação, conversa face-a-face, tem sido substituída pelo fast-thought (pensamento rápido) oferecido pelos conteúdos digitais. Saciam momentaneamente a mente e o espírito, mas não alimentam o seu desenvolvimento, levando ao risco da obesidade cognitiva e espiritual.

Na era do fast-thought: a sobrecarga de informação afecta a nossa capacidade de concentração; o excesso e “dispersividade” associada ao tempo de ecrã leva a uma certa superficialidade no contacto com a realidade; o imediatismo ou gratificação instantânea leva-nos a ser menos pacientes; as redes sociais induzem-nos a substituir a interactividade com o outro por uma “comparatividade” com a versão digital do outro; o tempo rejuvenescedor passado na natureza é cada vez menor; a realidade agora é aumentada, mas a direcção actual é a da sua virtualização, levando a experiências interiores mediadas por ecrãs que nos desligam a realidade física exterior a nós; o tempo de ecrã induz um maior tempo de sofá, afectando a experiência de vida quando saímos das zonas de conforto; e, por fim, quanto mais informação consumimos, menos tempo sobra para pararmos e reflectirmos. Tudo isto afecta a vida intelectual que é cognitiva e espiritual, levando-nos a um amortecimento da mente e do espírito, sem que nos demos muito conta disso. O que fazer? Sugiro que nos deixemos pautar por coisas que à semelhança da música e do riso não precisam de significar seja o que for para nos dar um prazer profundo, fazendo da nossa vida, uma vida plena.

E porque não começar por deixarmo-nos ser pautados pela espiritualidade? A espiritualidade é a qualidade ou natureza da dimensão da existência humana que está para além do espaço, do tempo, do que é físico ou mental, e mesmo assim, envolve e sintetiza tudo isso num todo misterioso que se sente e pensa sem depender do sentir e do pensar. É um todo que se vive e que nos liga a tudo, havendo maior sensibilidade numas pessoas do que noutras.

Como engenheiro e cientista, o modo como compreendo ser pautado pela espiritualidade consiste naquela abertura relativa à compreensão e, sobretudo, vivência do mundo, que não pode fechar-se num só conceito ou dispersar-se por muitos conceitos, mas que procura em cada conceito, experiência, palavra, um sentido e um significado que dê sabor à existência.

Aqueles que se consideram mais “terra a terra” e afirmam viver no (e do) concreto das coisas visíveis, pensam ser uma pura perda de tempo pensar, reflectir ou experienciar a sua dimensão espiritual. Alguns chegam mesmo a considerar que a dimensão espiritual do ser humano e religiosidade são a mesma coisa, pelo que ligar-se a uma certa religiosidade não tem sentido. Não existem diversas formas de viver a religiosidade? Qual a correcta? Talvez por haver tantas signifique que nenhuma está correcta ou tem sentido. Usam a dúvida como bloqueio em vez de motor de profundidade. A visão que têm da religião é a da repressão da vontade e das ideias próprias. Contudo, todo o ser humano confrontado com experiências extremas que ameaçam a sua vida, experimentam, nem que seja por um breve momento, que existe algo que está para além de nós próprios e, nesse sentido, poderão aceitar a espiritualidade como algo com valor útil diante da finitude. O que teriam a perder se deixassem que a sua vida fosse pautada pela espiritualidade, começando, por exemplo, por um minuto de silêncio por dia?

Uma vida pautada pela espiritualidade, gradualmente, abre-se a tudo o que está para além de nós. E esse tudo é muito. É infinito.


Para acompanhar o que escrevo pode subscrever a Newsletter Escritos em https://tinyletter.com/miguelopanao


Imagem de Pexels por Pixabay