Sáb. Mai 24th, 2025
Papa Francisco: o seu legado | Rubrica dedicada à reflexão sobre o legado do Pontificado do Papa Francisco

Miguel Oliveira Panão

Há gestos que não precisam de gritar para mudar o mundo. Há passos que não fixam o olhar no chão, mas impelem-nos a contemplar o horizonte do coração. O pontificado de Francisco é feito de um material raro — a proximidade — que é, ao mesmo tempo leve e denso, simples e imenso.
Num tempo onde tudo parece acelerar — onde a tecnologia promete eternidades com murais infinitos e a produtividade é marcada pelo tempo que fragmenta a vida, — Francisco plantou árvores que no silêncio crescem. Árvores cuja sombra nos protege. Árvores cuja raiz funda orienta a mente que aprofunda. Cada gesto seu, cada palavra, recorda-nos que o ser humano não é uma máquina, mas um mistério. As suas propostas da ecologia integral, de uma Igreja em saída, de um estilo de ser Igreja sinodal são radicais por serem radicalmente humanas, mas inspiradas por uma escuta sincera da Vontade de Deus. Não é o cristianismo da força, do império, ou do medo, mas da ferida que não se esconde para se curar. Francisco legou-nos um estilo de ser cristão que aceita ser vulnerável, onde as falhas não nos definem e que o abraço a todos renova o tecido social. Um cristianismo que sabe como a luz não entra pelas muralhas, mas pelas fendas.
É curioso que, enquanto a ciência desenha horizontes sem fim e sonha com a tecnologia que gera mundos sem dor, Francisco recorda que é precisamente no reconhecimento da nossa imperfeição que se esconde a perfeição da nossa condição. Ao propor uma “Igreja em saída”, ao falar da “cultura do encontro”, ao escrever encíclicas como a Laudato Si’ — onde a ecologia se entrelaça com a espiritualidade — Francisco ensinou-nos algo que o mundo tem esquecido: a vida não é só fazer e acelerar, mas sobretudo ser e estar.
Estar atento. Estar presente. Ser inteiro, mesmo aos pedaços.
No mundo da informação e gratificação instantâneas, da distração permanente, o Papa Francisco legou-nos como a simplicidade nos leva a travar. A escutar. A cuidar. A cultivar não só a terra, mas também o tempo, não só o corpo, mas também a casa comum como o lugar onde podemos experimentar a presença de Deus. E aqui, entre o fio da ciência e o laço da fé, entre o algoritmo da tecnologia e o cântico da espiritualidade, Francisco abriu um espaço novo onde podemos ser, sem precisar de parecer; onde podemos crer, sem precisar de vencer; onde podemos caminhar, mesmo sabendo que tropeçar faz parte do caminho.
O seu legado é um convite à autenticidade, a aceitar que somos um projecto inacabado, um poema por escrever e uma semente por florescer. Em cada palavra mansa pronunciada, e em cada pequeno gesto realizado, Francisco deixou-nos o mapa de uma nova forma de viver a fé. Longe de nos separar do mundo, não tememos nele mergulhar, sabendo que não há na terra paraíso sem dor, mas que existe também um caminho de esperança que nasce exatamente onde dói. Talvez o seu maior legado seja aquela confiança inabalável no amor recíproco ao pedir inúmeras vezes: rezem por mim. Agora pedimos-lhe que, junto de Deus, interceda por nós.