Ter. Fev 18th, 2025

Luís Manuel Pereira da Silva*

Inicio esta reflexão com uma declaração de apreço e reconhecimento: admiro a sensatez evidenciada pelos constituintes de 1976 no que respeita à matéria deste texto – a relação entre o Estado e a Religião.

Na verdade, os constituintes souberam encontrar um equilíbrio que a história da República mostra que era necessário (ainda que difícil!) encontrar. O laicismo da Primeira República e a difícil garantia prática (ainda que, no texto escrito, ela se afirmasse) da liberdade religiosa da Segunda criavam um quadro exigente para os que tiveram a difícil tarefa de redigir uma Constituição, após a Revolução de Abril.

Mas conseguiram-no. E, entre os seus maiores méritos, está, curiosamente, um silêncio.

Os Constituintes tiveram a inteligência de evitar o termo a que as posições democráticas associam, habitualmente, a justa relação entre Estado e Religião: laicidade!

A sua omissão do texto da Constituição foi uma decisão inteligente e prudente. Como venho sustentando, a nossa Constituição não utiliza o termo: opta pela descrição.

É que, com efeito, a inclusão do termo, dado ser ambíguo na sua interpretação (quando não, mesmo, equívoco), tem sido fonte de tremendas dificuldades, nos países que optaram por fazê-lo. O mais paradigmático é, bem certo, o caso da República Francesa que, na senda do espírito da ‘sua’ Revolução, desconfia da religião e prefere fazer de conta que ela não existe. Ao incluir, logo no artigo 1.º, a referência a que a república se define como ‘laica’ (o artigo afirma que ‘A França é uma República indivisível, laica, democrática e social.’) favorece toda uma abordagem elástica da relação entre Estado e Religião que, no caso gaulês, tem dado prevalência a uma leitura de pendor laicista. Como é sabido, a França, isto é, o seu Estado, tem um problema com as religiões. Não sabe o que fazer com elas, como se, para ele (Estado), elas não existissem (mas existem e fazem parte do sentir do seu povo…).

Clarifiquemos…

O termo ‘laicidade’, etimologicamente derivado de ‘laos’ (em grego, ‘povo’) evoca a ideia de uma distinção entre o âmbito político estrito (na sua configuração organizacional enquanto Estado) e o domínio do religioso. Repercute, mais profundamente, a distinção entre o sagrado e o profano.

Reparemos, porém, que a distinção não significa a indiferença ou separação sem relação. Como, aliás, acontece em todas as matérias em que falar de dualidade não implica, necessariamente, sustentar um qualquer dualismo. Assim quando se fala na dualidade antropológica ‘corpo-alma’ que, para muitos, é pretexto para o dualismo que coloca um em oposição ao outro, redundado na afirmação de que só num dos dois está a realidade humana.

Este fenómeno ‘epistémico’ (no âmbito do conhecer e da configuração do saber) verifica-se, também, quando falamos da laicidade.

A distinção – legítima e, na perspetiva católica, correspondente ao desejo do próprio Jesus Cristo de ‘dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César’ – tem servido, porém, de pretexto para se sustentar um dualismo que, afunilando cada vez mais a interpretação, conduz à convicção de que o Estado deverá compreender-se como fim em si mesmo (cabendo aos cidadãos servi-lo ‘acefalamente’ como se tudo visasse o bem do Estado e não, afinal, fosse o Estado, já, a servir os cidadãos e a procurar o bem destes…), nada mais havendo entre estes e o cidadão individualmente considerado e omitindo toda a relevância das estruturas e comunidades intermédias onde este se realiza, enquanto pessoa e, afinal, cidadão…

É fácil, face a esta breve descrição, constatar que o termo ‘laicidade’ se presta, portanto, a derivas que, sendo bem-intencionadas, inicialmente (o Estado não é a Religião; a Religião não é o Estado, ganhando ambos em liberdade com esta distinção…), se encaminham, por abuso de interpretação, para um beco de que dificilmente se sairá, sem custos graves: o Estado passa a gravitar em torno de si mesmo.

Ora, a leitura atenta da Constituição da III República permite constatar que os nossos constituintes perceberam (consciente mente ou talvez não…) que a equivocidade do termo exigia que se tivesse o cuidado de não o utilizar, porque, como se afirma no artigo 41.º da constituição (o primeiro, aliás, em que se fala desta matéria), o que está em causa é a liberdade religiosa e não a neutralidade absoluta do Estado. O Estado serve os cidadãos e, como eles são religiosos, deve garantir as condições para que estes se vejam respeitados enquanto religiosos. Por esse motivo, o Estado não se identifica com nenhuma religião, mas obriga-se a respeitar a liberdade dos seus cidadãos. Repare-se que a formulação adotada no número 4 do artigo 41.º coloca o acento na liberdade e não na já acima enunciada neutralidade do Estado. O que este número defende é, de facto, que o Estado não pode imiscuir-se no que é matéria das religiões, ao dizer que ‘As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.’ O Estado limita-se quanto a tiques cesaropapistas, mas não se reconhece o poder de silenciamento do âmbito religioso. Isso está ausente da nossa Constituição que, aliás, na linha do que eminentes constitucionalistas (entre os quais merece destaque o professor Jorge Bacelar Gouveia, que detidamente, analisa estas matérias em ‘Direito da Religião: laicidade, pluralismo e cooperação nas relações Igreja-Estado’, editado pela Almedina) vêm defendendo, colide com a ‘separação cooperativa’ que se observa no espírito da nossa Constituição.

Os constituintes de 1976 foram inteligentes. Perceberam que a história nos ensinara a não repetir o ‘erro de Afonso Costa’ (aludo ao livro de Amadeu Gomes de Araújo, editado pela Alêtheia e que recorda que entre as causas principais da queda da I República, está a sua aversão e, mesmo, afronta à religião.). Sê-lo-ão, igualmente, os intérpretes do espírito dos constituintes?

Os tiques laicistas, e os desejos de que o termo equívoco (omisso, mas sempre forçado a tornar-se latente) favoreça o emergir de uma atitude indiferente do Estado para com o real sentir e viver dos cidadãos, estão sempre à espreita.

Avançamos ou regredimos (ao que não queremos repetir) quando a ausência de representantes religiosos em cerimónia de abertura de ano judicial se considera motivo de regozijo?

Temo o que os sinais fazem presumir…


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de ‘Bem-nascido… Mal-nascido… Do ‘filho perfeito” ao filho humano’, ‘Ensaios de liberdade’ e de ‘Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg’

Imagem de André Santana Design André Santana por Pixabay