Qui. Abr 25th, 2024

D. Manuel Martins: Vida que é farol

Pe. Georgino Rocha

A notícia do falecimento do bispo de Setúbal, como gostava de ser chamado D. Manuel Martins, faz vir a público a elevada estima e admiração que granjeou ao longo da sua vida na realização da missão pastoral. As vozes que se ergueram referem, com frequência, a sua lisura de carácter, a transparência de procedimentos, a oportunidade e clareza das intervenções, a familiaridade com quem é vítima dos atropelos à dignidade humana e sofre por não ter voz, nem vez numa sociedade surda, apesar de muitos meios de comunicação, e numa igreja distante da realidade que configura a vida humana e, tantas vezes, a maltrata.

“Nasci bispo em Setúbal, agora sou de Setúbal. Aqui anunciarei o Evangelho da justiça, da paz e do amor”, afirma D. Manuel Martins ao chegar à sua nova diocese, em 1975, onde fica até 1998 quando cessa funções.Vinha do Porto, diocese a que pertencia, e ao Porto regressa após a aceitação do pedido de resignação por João Paulo II. Traz consigo a experiência de pároco, de professor, de vigário geral de D. António Ferreira Gomes e de muitos outros “ofícios” dentro do presbitério e no seio da Igreja diocesana. Experiência aliada a uma vasta cultura e a uma profunda sabedoria que brota do amor entranhado a Jesus Cristo e ao Evangelho, à Igreja e às suas comunidades locais. Experiência consistente que lhe serve de suporte na organização da nova diocese e no assumir dos seus múltiplos desafios.

Personalidade forte e irradiante, o bispo de Setúbal faz ouvir a voz dos silenciados, em situação de grande precaridade e instabilidade familiar. Marca presença de modo inequívoco sempre que a dignidade humana é esquecida ou espezinhada. Toma iniciativas discretas, mas eficazes, junto de quem mais precisa, sobretudo na península de Setúbal, na crise da década de 80 do século 20.

Maria de Fátima, de Leça do Balio, terra natal de D. Manuel Martins, lembra-se de o ver levar para Setúbal “carradas de roupas, batatas e couves” nos tempos mais graves da crise que atingiu a região. Ele tinha uma “forte consciência social”, era “um amigo” e “amigo dos mais necessitados”, acrescenta. Esta confidência pode servir como “botão de mostra” do seu modo de ser e de agir.

Como eco à notícia da morte, afirma o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa: “Seria na Diocese de Setúbal que, entre 1975 e 1998, a lealdade a esses valores mais se fez sentir, tornando D. Manuel Martins uma personalidade por todos admirada quer pelo vigor e desassombro da sua palavra, quer pela energia da sua ação, quer pela sua rigorosa independência face aos poderes instituídos”. E acrescenta que ele soube projetar “os valores universais do humanismo cristão muito para lá dos limites da sua diocese”.

De facto, os meios de comunicação mostram-se particularmente sensíveis a certos estilos de vida e de linguagem, a temas mordentes da realidade social e religiosa, a mensagens amassadas em suor e lágrimas, a rostos compassivos e a pessoas intervenientes. D. Manuel Martins satisfazia estas características e transpirava uma natural empatia com as pessoas envolvidas. Por isso, escreve à Madre Teresa de Calcutá, a fundadora das Filhas da Caridade e irmãzinha dos pobres, sobretudo na Índia, para vir abrir uma comunidade das suas irmãs, em Setúbal. E consegue. O sonho de dar rosto comunitário à solicitude de pessoa-a-pessoa realiza-se de forma convincente e atesta a dimensão primeira da atenção ao outro em necessidade.

D. Manuel Martins foi presidente da Comissão Episcopal da Ação Social e Caritativa, bem como da Comissão Episcopal das Migrações e Turismo, na Conferência Episcopal Portuguesa; e ainda presidente da Secção Portuguesa da Pax Christi e da Fundação SPES, criada por D. António Ferreira Gomes.

Deixa a marca de quem: “Não se resigna, intervém. Não implora auxílio do poder, exige o que os direitos requerem. Não adormece as consciências, desperta-as para se darem ao respeito. Não se contenta com reprovar, acusa e denuncia as injustiças. Não fala da pobreza, combate-a”. Este depoimento pertence a D. Carlos Azevedo, bispo português, delegado do Conselho Pontifício da Cultura (Santa Sé); depoimento escrito na página do seu Facebook.

O seu exemplo de cidadão e de cristão bispo é reconhecido na sociedade civil e na Igreja. e expressa-se publicamente pela atribuição da grã-cruz da Ordem de Cristo durante as comemorações do 10 de Junho de 2007, em Setúbal, e do galardão dos Direitos Humanos da Assembleia da República, a 10 de Dezembro de 2008.

D. Jorge Ortiga recorda o imperativo evangélico que mobilizava as energias de D. Manuel Martins:”Se não fizermos a revolução com o Evangelho nas mãos, outros a farão… mas com a foice e o martelo”. E acrescenta:  “Vidas que são faróis”. Assim o reconhece também a diocese de Setúbal que quer assumir o seu legado missionário e lembrá-lo “sempre e acima de tudo, como o seu Bispo, amigo e próximo, desprendido de si, habituado a viver com simplicidade e a passear, a pé ou de bicicleta, pelas manhãs de Setúbal, pai, pastor e irmão, tão inflexível na defesa da verdade e da justiça, como terno, amigo e compassivo no encontro fácil com aqueles que acolhia sorridente”.

(Foto: Agência Ecclesia)